Meias-finais: Diário de bordo I

Apesar da ansiedade dos minutos finais ganhou quem devia ganhar: a Nova Zelândia está na final, ganha o râguebi de movimento e o prazer dos espectadores, perde a colisão

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Reuters

O despertador tocou às quatro da manhã. Noite lá fora. Às cinco chega o táxi. No aeroporto é preciso pôr tudo à vista, tirar o cinto, segurar as calças, abrir a mala para colocar os produtos de toalete no saco de plástico e atrelar a uma fila de gente para mostrar o cartão de cidadão. Para onde vai? Londres, respondi. Faça o favor e devolveu-me o cartão de cidadão.

 

Entrei no avião, mostrei de novo o bilhete e sentei-me. Calhou-me o lugar do meio. Nos low cost não há espaço, os joelhos vão nos queixos. Não consigo dormir. Quando, com duas horas de viagem a coisa ia acontecendo, dez minutos depois estava cheio de dores no pescoço. Lá fora, pela janela, via-se um tecto de nuvens que prometia os aguaceiros da meteorologia - que raio de azar. Azar para o jogo e azar porque não há - só uma mala pequena ou paga -se mais do que pela viagem - roupa para grandes mudas (o gajo do lado quer ler o que estou a escrever, está admirado porque escrevo com a ponta do dedo no telemóvel). Aterramos! e a malta bate palmas.

 

Bilhetes de ida e volta para uma viagem de três-quartos de hora de comboio, compra do Oister para o metro e procurar a linha justa no mapa do tube londrino. Chegada ao hotel em Kensington e apanhar o ar impávido do recepcionista: Check-in só a partir das duas da tarde. Lá conseguimos que nos guardassem as malas e ala! Burger King e descobrir o melhor caminho para Waterloo para apanhar de novo um combóio para Twickenham - casa do rugby inglês, como se anunciam.

 

Os mapas avisam: 15 minutos a pé da estação até ao estádio. Rua fora uma autêntica manifestação de entusiastas a sermos cumprimentados pelos voluntários. Um deles, com ar de chefe, ao ler no meu casaco a origem, admirou-se: From Portugal?! So nice. It's unusual... sem perceber que à volta havia outros portugueses. E o magote de diferentes adeptos, de diferentes camisolas, caminha rua fora sem atropelos, provocações ou o que quer que possa perturbar aquele momento mágico de paixão partilhada.

 

Nas casas do alinhamento da rua a oportunidade traduz-se na venda dos mais diversos home made, desde comida até artesanato - na janela de uma delas a estranha presença de uma enorme bandeira dos All Blacks. Fotografias de ocasião, encontro com conhecidos - encontrei o treinador neozelandês Aussie McLean que esteve em Portugal na época passada - passagem pela loja e parar para ver os candidatos a pilares a fazer força na máquina a tentar bater-se uns aos outros e a igualar a marca de um pilar internacional inglês. Também se podem escrever mensagens pessoais na cartolina onde normalmente se lê Try!

 

Lugar encontrado, tudo sentado, entram as equipas, cantam-se os hinos e à volta vai correndo a cerveja para aclarar vozes e, para os mais distraídos, passarem o tempo a atropelar espectadores para irem, mesmo no meio de uma jogada, à bear room despejar o que beberam...

 

Se os hinos representam um momento de grande emoção - as lágrimas caem por milhares de caras abaixo - o haka neozelandês é um momento único. E visto ao vivo - mesmo se as expressões faciais ficam longe das vistas na TV - tem uma dimensão dramática impressionante a que as diferentes interpretações - desde o "agarrem-me senão mato-o", ao "acagassem-se com a nossa força e desapareçam" até ao mais provável de ser apelo aos valores colectivos ancestrais de combate para, juntos, enfrentarem o adversário - dão a representação iniciática do combate.

 

O jogo foi óptimo: duro, desgastante, intenso. Um combate. Com domínio, apesar da proximidade do resultado (20-18), dos neozelandeses: 57% de posse da bola, 67% de domínio territorial, 117 transportes de bola contra 76 de que resultaram 387 metros percorridos contra 149 dos sul-africanos; do lado All Black apenas três placagens falhadas - 96% de eficácia - contra 20 - 87% de eficácia - da parte da África do Sul; com, mais significativo ainda, 53 ultrapassagens da linha de vantagem contra apenas 25; e dois ensaios contra nenhum. Um domínio óbvio, mesmo se uma injustificada inadaptação à arbitragem provocou o exagerado número de 14 penalidades - aceita-se por média, 10 - e permitiu um resultado apertado a que a adaptação da actual experiência galesa de pontuação (seis pontos por ensaio e tudo o restante a valer dois) traduziria num resultado mais condizente com o visto: 20-12.

 

Muitas coisas ficam na memória do jogo como o passe NBA de McCaw para o ensaio de Kaino, o decisivo roubo de bola de Retallick num alinhamento sul-africano, a organização defensiva ou a capacidade de passe neozelandesa, esta última uma tradição que vem da constância, ao longo da carreira de jogador, do "catch and pass" - a jogada que deu o último ensaio na derradeira hipótese da célebre vitória (24-22) de 2013 sobre a Irlanda, contou 25 passes. "Que outra equipa seria capaz de igual demonstração?" pergunta Graham Henry. Mas para a posteridade, para ver, rever e aprender é a jogada do segundo ensaio, a manobra atacante de Ma'a Nonu - ataque em velocidade ao intervalo, endireitamento da corrida com passada para dentro para fixar o defensor directo, continuação da corrida em ligeiro arco de círculo para chamar Petersen a vir fechar o espaço interior e aumento da largura do corredor exterior, por onde, lançado em velocidade, Barrett recebeu um passe preciso para marcar. Um 2x2 de excelência, manobrado com superior qualidade para ser transformado num mortal 2x1 a fazer jus ao velho conceito: como se lida com um 2x2? transforma-se em 2x1! Um tratado!

 

E de novo a qualidade de Carter, de Ben Smith, homem do jogo, ou do guerreiro capitão McCaw que voltou a demonstrar as suas capacidades de liderança - para além do exemplo, do combate, da obstinação vencedora - ao transformar a sua equipa para terminar como vencedora. Do lado sul-africano fica a enorme capacidade de luta, a força física e o pé de Pollard. De ambos os lados o rigor táctico no cumprimento do plano de jogo que oporia os pontos fortes e fracos de um e outro lado. Apesar da ansiedade dos minutos finais - dois pontos não são diferença - ganhou quem devia ganhar: a Nova Zelândia está na final, ganha o râguebi de movimento e o prazer dos espectadores, perde a colisão. E a ideia da necessidade de bestas mecânicas para jogar râguebi perde-se no espaço da técnica e da inteligência táctica.

 

A chuva aumentou. Fora do Estádio ouvia-se, pelos megafones dos voluntários, que existiam problemas na estação ferroviária de Twickenham e que devíamos apanhar os autocarros. Nunca mais saímos daqui, pensei. Bem organizados, com o plano treinado - por aqui, para tal parte, por ali para a outra - com dezenas de autocarros disponíveis saímos mais rápido do que supunha. Às oito e meia estava no hotel. Passagem rápida para marcar o ponto numa pint e ir jantar com amigos. Volta ao hotel e, já esgotado com as 18 horas de andamento, cama e dormir.

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