Boliqueime e não Bruxelas

O que se passa em Portugal é, de momento, mais Boliqueime do que Bruxelas.

Afinal o que se passa em Portugal? É um golpe? Não é um golpe? É um golpe silencioso, como diz Jacques Sapir? A União Europeia passou o Rubicão, como escreve Ambrose Evans-Pritchard? O mundo quer saber.

A minha caixa de email e a minha conta de Twitter, tal como as de bastantes portugueses, têm recebido a sua quota-parte de perguntas e inquietações sobre Portugal vindas do estrangeiro. Eis o que eu tenho tentado explicar.

Em primeiro lugar, que tudo depende da maneira como interpretarmos as palavras e ações de Cavaco Silva, e que eles não fazem ideia de como isso é complicado. Não porque é difícil de interpretar, mas porque não dá para acreditar. Se levarmos Cavaco a sério, estamos a ir ao encontro a uma crise constitucional prolongada: há partidos excluídos da governação, embora respeitem a Constituição, uma maioria parlamentar que não é respeitada, e um governo de gestão que vai durar meses e deixar a situação do país mais vulnerável do que qualquer outra possibilidade política.

Do que lemos, tanto na teoria como na prática de outros países, isto não pode acabar bem, nem sem deixar cicatrizes.

Mas depois de coçarmos a cabeça, todos chegamos à conclusão de que nem Cavaco faria uma coisa destas e que, portanto, ele não poderá deixar o país sob um governo de gestão por vários meses. Ou o discurso não era para levar a sério, ou lá se encontra, escondida por detrás de uma vírgula qualquer, a escapatória para a decisão mais sensata de deixar a maioria parlamentar formar governo.

Em suma: isto é uma crise constitucional, ou talvez não, e um abuso de poder, se chegar mesmo a ser, mas, enquanto não for, não sabemos se havemos de sossegar ou alarmar o mundo. Liguem daqui a duas semanas.

Uma coisa, no entanto, dou por garantida. Apesar da grande vontade que muitos revelam em culpar “a Europa” pelo presente desaguisado nacional — e dos muitos motivos de crítica que nos merecem o euro, e o Banco Central Europeu, e os eurocratas, e o ordoliberalismo alemão —, esta coisa que se passa conosco, qualquer que ela seja, é para já apenas doméstica.

Tudo o resto é pretexto, de um lado e de outro — sobretudo de Cavaco para criar uma crise em Portugal com a desculpa do europeísmo de uns partidos e do suposto antieuropeísmo de outros.

Em suma: o que se passa em Portugal é, de momento, mais Boliqueime do que Bruxelas. A “Europa” só tem que ver com o que se está a passar no sentido indireto de que Roma também está implicada se alguém decide ser mais papista do que o Papa. Cavaco tem uma visão do país e do mundo que ficou mumificada na Guerra Fria. Não admira que use o euro como pretexto para impedir os comunistas de governar.

Não é fácil explicar isto ao mundo, mas o que se passa em Portugal é — pelo menos por agora — tão português quanto o pastel de bacalhau. O bacalhau pode vir da Noruega, mas a receita é nacional. E explicar a receita da nossa crise política é tão difícil quanto descrever os encantos do diminutivo na língua portuguesa. Aí talvez lhes pudéssemos dizer que, se de momento não é um golpe, pode ser que não passe de um golpezinho.
 

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