O agrupamento e a Casa que trouxeram mudança
Uma sala cheia para ouvir um concerto de música erudita com menos de 50 anos é um fenómeno.
Uma sala cheia para ouvir um concerto de música de tradição erudita com menos de 50 anos é um fenómeno, não apenas em Portugal. No Porto, quinze anos de um insistente trabalho e inteligentes estratégias de marketing conseguiram encher a sala para ouvir música de tradição erudita com menos de 50 anos no concerto da passada terça-feira com que o Remix Ensemble (RE), que celebrou o seu 15º aniversário, na Casa da Música (CdM).
O jovem compositor português em residência na CdM ao longo de 2015 é Nuno da Rocha (1986). A estreia absoluta da sua Passacaglia (encomenda da CdM) abriu de forma enérgica este concerto comemorativo. Antes de prosseguir com o programa, Peter Rundel pegou no microfone como anfitrião de uma festa que assumiria um carácter mais personalizado, não disfarçando a emoção ao explicar que a inclusão do terceiro andamento de um arranjo de Klaus Simon da Sinfonia nº 1 de Mahler se devia ao gosto do compositor Emmanuel Nunes (1941-2012) pela música daquele compositor austríaco. Para além do arranjo em questão não ser particularmente interessante, o RE não empenhou o melhor de si na sua interpretação, exceptuando o caso dos violinos, fagote e flauta que se destacaram pela positiva. Seguir-se-ia o momento mais aguardado do evento: a estreia mundial póstuma de uma das obras de juventude de Emmanuel Nunes, com uma partitura preparada pelo seu discípulo mais próximo, o compositor João Rafael. Un Calendrier Révolu– Parte I (que até pouco antes da sua morte o compositor não autorizava que fosse tocada) tanto denuncia os caminhos que trilhou nos anos 60 (em partituras como Degrés e Esquisses, a que o esboço deixado por Nunes assumidamente recorre) como aponta para uma sensualidade mais explícita que já neste milénio Emmanuel Nunes viria a exibir. Este momento musical foi uma bonita homenagem do RE ao compositor que se associou ao agrupamento e com o qual partilhou um trabalho próximo e continuado.
A segunda parte do concerto seria dedicada a uma outra forma de pensar a música, com uma convincente interpretação de Concertini (2005), de Helmut Lachenmann. Nesta celebração, o RE sintetizou alguns aspectos que têm caracterizado o seu trabalho: fomentar a criação musical portuguesa, interpretar (e divulgar) os compositores que verdadeiramente importam (e Lachenmann é um dos melhores exemplos do que de melhor o RE tem divulgado), manter uma certa ligação com a tradição, sem esquecer a figura de um dos compositores mais presentes no trabalho do agrupamento.
Também inteligente é o cruzamento de linhas de programação num mesmo concerto da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música (OSPCdM). Nuno da Rocha (jovem compositor português em residência) volta a contracenar com Helmut Lachenmann (compositor em residência – Ano Alemanha), na mesma sala cheia, desta vez não aliciada com alargados convites, mas para ouvir Pedro Burmester (Ano Alemanha– integral dos concertos para piano de Beethoven por Burmester).
Após uma mudança de palco de duração superior à Abertura de Così fan tutte– com que, sem alguns dos seus mais destacados músicos, a orquestra se havia apresentado cumpridora da tarefa de executar sem erros a partitura (excepção notória para os oboés, que iniciaram de forma belíssima prometendo um pouco mais do que a orquestra acabou por dar) – Lachenmann conseguiu inquietar algum do público que, apesar de muito educado, não entende ainda que a audição musical pressupõe, antes de mais, o respeito pelos músicos e pelo público que realmente pretende escutar. É que há música tão subtil que o único ruído que permite ao público é o da respiração. Accanto, para clarinete e piano, nem sequer é um caso extremo de subtileza, mas o desconforto de alguma plateia, que não encontrava posição perante música tão desafiadora, acabou por impedir uma fruição mais solta de uma obra já de si menos “exuberante” do que o Concertini que o RE havia apresentado quatro dias antes.
Nuno da Rocha soma a segunda estreia mundial da semana, com PITCH (também encomenda da CdM), e confirma alguns traços que havia esboçado com o RE: ambas as partituras são bastante eficazes do ponto de vista da audição, porém, a sua sólida relação com a tradição musical (e a sua juventude, talvez) tê-lo-á ainda impedido de transpor a imitação do rico imaginário sonoro que bebe nos seus antecessores.
Quase com a mesma impassibilidade do início do espectáculo, uma orquestra certinha, sem maiores sinais de vitalidade (será esta a marca do maestro Brönnimann para a OSPCdM?), acompanhou o pianista Pedro Burmester, cuja prestação foi bastante mais convincente. Quando, a meio do Adagio do Concerto nº 2 para piano e orquestra em Si bemol maior, de Beethoven, se começava finalmente a fugir para o domínio do inefável, eis que se revela um pianista com muito bom feitio, prosseguindo o seu trabalho o melhor possível após um indisfarçável toque de telemóvel com que a plateia o desafiou.
Aplaudido de pé e com vários regressos ao palco, Pedro Burmester promete regressar em Dezembro, para o derradeiro concerto da integral dos concertos de Beethoven, em mais um espectáculo em que a música de Lachenmann certamente também contará com casa cheia.