Também na lusofonia, “o caminho faz-se caminhando”

A sociedade civil lusófona pode e deve mobilizar-se mais, na denúncia deste e de outros casos, mas isso não invalida que se continue a discutir a lusofonia.

Numa daquelas posições tão grandiloquentes quanto ocas de que é fértil a nossa história, o filósofo alemão Theodor Adorno sugeriu que “não era possível escrever poesia depois de Auschwitz”. Fatalmente, escreveu-se muita poesia depois de Auschwitz e não consta que a totalidade dos poetas (ou sequer a maior parte) fosse ou seja negacionista.

Mais recentemente, a propósito da tragédia diária dos imigrantes que morrem nas águas de Mediterrâneo, também mil e uma vozes proclamaram o obsceno que é a União Europeia andar a discutir questões políticas e económicas – pois o que é a questão da dívida do Estado grego, por exemplo, quando comparada com a morte de Aylan Kurdi, o menino sírio de três anos que morreu afogado, que tanta (justa) comoção provocou por todo o mundo? Decerto, pouco ou nada, absolutamente nada.

Este tipo de posições, que poderíamos multiplicar – pensemos, por exemplo, no que se passa, e sobretudo no que não se passa, na ONU todos os dias – arrancam sempre grandes aplausos em (quase) todas as plateias, mas não resistem a dois segundos de reflexão, nem, muito menos, ao devir da própria realidade. Sim, é preciso dar a devida resposta à tragédia diária dos imigrantes que morrem nas águas de Mediterrâneo. Mas – subtil, abissal diferença – sem esquecer tudo o resto.

Vem isto a propósito de uma outra posição a que o Jornal PÚBLICO resolveu dar destaque de primeira página (21.10.2015), da escritora Dulce Maria Cardoso, segundo a qual, face ao conhecido caso de Luaty Beirão, o jovem luso-angolano em greve de fome, a discussão da lusofonia correria o “risco de se tornar num obsceno entretenimento de colonizadores e seus cúmplices” – isto num artigo (demagogicamente, para dizer o mínimo) intitulado “Pecados da Lusofonia”, em que a autora parece lamentar ter sido “demasiado tarde ou demasiado cedo para [os novos Estados independentes] escolherem outra língua que não o português como sua língua oficial”.

Admitindo que pudesse ter sido mais “chique” a escolha da língua francesa, queremos aqui apenas ilibar a lusofonia deste alegado “pecado”. Sim: Luaty Beirão e os seus companheiros estão presos injustamente (como muitos outros angolanos, longe dos holofotes dos “media”). Sim: o regime político angolano é particularmente injusto e terá que evoluir, sob pena de ruptura social. Sim: o Estado português poderia e deveria fazer mais, apesar de Luaty Beirão querer ser julgado apenas como cidadão angolano. Sim: a sociedade civil lusófona pode e deve mobilizar-se mais, na denúncia deste e de outros casos.

Tudo isto, porém, não invalida, decerto, que se continue a discutir a lusofonia e, sobretudo, que a lusofonia se cumpra cada vez mais, enquanto caminho de convergência entre todos os povos falantes de língua portuguesa, nos planos cultural, social, económico e político. Desejaríamos que o regime angolano fosse já outro amanhã? E (apenas para dar outro exemplo) que o Estado da Guiné-Bissau respeitasse finalmente o seu martirizado povo? E que todo o espaço lusófono fosse um exemplo no respeito dos direitos humanos? Sim, desejaríamos que tudo isso fosse real já a partir do dia de amanhã. Mas o facto de, infelizmente, tudo isso não vir a ser já real a partir do dia de amanhã, não significa que devamos desistir desse caminho. Também na lusofonia, “o caminho faz-se caminhando”.

Presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono, www.movimentolusofono.org

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