O corpo mostra o tempo que o corpo tem

Tempo do Corpo, da coreógrafa Sofia Silva, é um projecto que explora a ideia do corpo enquanto “documento que regista a passagem do tempo”. Tem 20 participantes com 65 ou mais anos.

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Fotos Paulo Pimenta
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Quando lhe fizeram o convite, Eduardo Lemos nem pensou duas vezes. Não é de dizer não a um desafio e, por isso, aceitou participar no projecto. Os seus 74 anos já não lhe permitem mexer-se como quando era mais novo, mas mesmo assim quis fazer parte de um espectáculo de dança contemporânea. “Apesar das dificuldades”, avisa. A coreógrafa Sofia Silva tinha noção dessas “limitações”. Sabia que não iria trabalhar com bailarinos profissionais e que, por isso, tinha de trabalhar este corpo de forma diferente.

Foi depois de uma “experimentação” com bailarinos seniores, num laboratório de dança que fez em 2011, que Sofia Silva percebeu que “apesar de serem pessoas reformadas, ainda tinham muita vida, e tinham vontade de expor essa vida”. Então, decidiu que queria trabalhar os movimentos destes “corpos maduros” e “dessa vontade de viver”.

Assim, surgiu-lhe a ideia de trabalhar com pessoas mais velhas, explorando os seus movimentos, a sua fisicalidade e tudo aquilo que os seus corpos podem ainda transmitir. Não queria retratar o corpo relancionando-o com ideias ligadas à idade, pretendia explorar a noção de “corpo como um documento que regista a passagem do tempo”, explica.

Foi a partir dessa ideia que criou Tempo do Corpo, um projecto que propõe percorrer diferentes localidades do país e realizar um espectáculo de dança contemporânea, com cerca de 20 pessoas, a partir de 65 anos, de cada um desses sítios. Começou por pedir aos teatros que divulgassem a nota de recrutamento e que contactassem juntas de freguesia ou centros de dia, disseminando o projecto junto da comunidade. Não exigia condições aos voluntários. Todos podiam participar, mesmo quem tivesse mais ou menos dificuldades físicas. Depois de Ílhavo – onde foi a estreia-, Guimarães, Sever do Vouga, Torres Novas, Estarreja, Oliveira do Bairro, Fundão e Cartaxo, esta criação chega agora ao Porto.

É lá que Eduardo Lemos, Maria José Prata e os colegas têm vindo a trabalhar desde terça-feira para que tudo esteja pronto este domingo, dia 25, às 17h. No Rivoli, depois de alguns dias de ensaio, os participantes já estão mais à vontade com a coreografia e até já notam a evolução na expressividade dos seus movimentos. De vez em quando, acontecem “alguns lapsos”, mas tudo está já mais afinado. Aliás, “até os profissionais se enganam, explica Eduardo Lemos. “A nossa relação com o espaço e com o tempo – a velocidade com que fazemos as coisas – modificou-se imenso”, concorda Maria José Prata, de 68 anos. Lembra que se tudo tivesse sido filmado no primeiro ensaio, daria para notar essa evolução. Agora, “é um corpo que se educou e que ganhou uma postura completamente diferente”, diz.

Maria José viu o anúncio na programação do Rivoli e decidiu participar no projecto. Sempre gostou de ver espectáculos de dança contemporânea, mas nunca tinha feito nada do género. Por isso, viu em Tempo do Corpo uma oportunidade. De início, esperava apenas preparar o corpo para uma coreografia, mas, depois de alguns ensaios, esta experiência superou as suas expectativas. “Permitiu-me reflectir sobre a relação do meu corpo com o espaço e a relação do meu corpo com os outros”, conta.

Foi isso mesmo que Sofia Silva quis fazer. Propôs-se a trabalhar as limitações de cada um, “as deformações dos corpos, o facto de os movimentos não serem tão amplos, tão perfeitos”, para criar um espectáculo que integrasse “diferentes expressividades”, a partir de “diferentes conceitos de corpo”. A ideia é mostrar o corpo enquanto testemunho de uma memória. Trabalhar as características físicas destas pessoas, não como “fraquezas”, mas antes como marcas da história de uma vida, explica a coreógrafa.

Para isso, desenhou um método de trabalho que funciona de forma colaborativa. Em cada uma das localidades, antes de dirigir os participantes, procura conhecer cada uma das pessoas, saber o que fazem, perceber as suas rotinas e descobrir um bocadinho a história de vida de cada um, “para perceber a relação do corpo com a sua história”. Depois, a partir de uma base que usa em todos os sítios por onde passa, constrói o espectáculo a partir das expressões corporais que cada participante lhe dá.

O maior desafio é contrariar o esquecimento, “a memória que se vai perdendo, aquilo que não se regista no corpo”, conta a coreógrafa. O objectivo é contrariar o regresso ao registo inicial dos corpos, apesar de partir também dos próprios participantes a maioria dos movimentos. Mas tudo isso não torna Tempo do Corpo num projecto comunitário. O ponto de partida não surgiu da vontade de trabalhar com esta comunidade em particular, criando um espectáculo. “É um projecto artístico, porque tive o interesse de trabalhar com estes corpos”, explica Sofia Silva.

A coreógrafa não sabe se o projecto vai ainda rumar a outras localidades. Tem outros projectos em mente e ainda não sabe o que vai acontecer nos próximos tempos. Mas, se a decisão dependesse de Eduardo e de Maria José, tudo isto seria ser replicado noutros pontos do país.

À semelhança da generalidade dos países europeus, Portugal tem uma população cada vez mais envelhecida. Pelas previsões do Instituto Nacional de Estatística, em 2050 um terço da população portuguesa terá 65 ou mais anos.

Para combater o isolamento nas populações mais envelhecidas, Eduardo considera que iniciativas como esta são importantes. “Há gente a deambular pelas cidades, sem objectivos, andam apenas a passar o tempo. E isto é extraordinário. É uma forma de espevitar a parte física e a mente”, diz. Maria José concorda. Ainda não subiu ao palco do Rivoli, mas isso não a impede de dizer foi muito importante para si. “É um exercício que fica para a vida, não apenas para um espectáculo”.

Texto editado por Andrea Cunha Freitas

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