O caso Joubert

Que esta polémica, em que o árbitro é o menos culpado, possa levar a World Rugby a assumir as suas responsabilidades, simplificando as Leis do Jogo para que haja uma maior clareza

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Se fosse escocês e fanático teria a certeza que a decisão de Craig Joubert de marcar pontapé de penalidade ao pilar Welsh foi um "roubo de igreja" e que só existiu para impedir que a "minha" Escócia chegasse às meias-finais e por isso é mais do que merecido o que tem passado e tudo aquilo que dizem dele. Mas não sou nem escocês nem fanático.

 

Se fosse membro da World Rugby (WR) não concordaria nem assinaria - por mais que pudesse agradar a escoceses - o comunicado que, publicamente, acusa Joubert de ter errado a decisão, trocando a devida, dizem, formação ordenada por penalidade. Porque não gosto de dar tiros nos meus próprios pés. Da autoflagelação da WR haverá - com certeza - consequências nefastas para a generalidade da arbitragem. E, para além do mais, este tiro desacredita o tão badalado processo de procura da verdade desportiva uma vez que o caso Joubert resulta, directamente, da ineficiência ou mesmo incompetência da própria WR.

 

Por todo o lado se pergunta: com tanta conversa sobre o vídeo-árbitro (TMO) e verdade desportiva do jogo porque é que não foi ouvido numa óbvia situação de incidência no resultado final? Porque o protocolo apenas admite o seu recurso para situações de jogo violento ou desleal ou para validar ensaios que ofereçam dúvidas da sua legalidade (jogada incluída). Então para um caso destes que tem absoluta influência no resultado final não pode ser utilizado? Não! E este não, por incompreensível, representa descrédito.

 

E não é possível porque a WR, como a sua antecessora IRB, do alto do seu pedestal de pretendida herdeira do legado das Home Unions (federações britânicas), sente-se como único baluarte da tradição e da cultura do jogo, ouvindo mal e vendo pouco - mais ainda quando se enche de marketeers que só têm olhos para números mesmo se inflacionados (veja-se o quadro WR do número mundial de jogadores). Já há muito que diversas vozes, incluindo o antigo árbitro sul-africano Kaplan, têm proposto avanços na utilização do TMO como - de acordo aliás com o que se passa noutras modalidades que usam novas tecnologias - permitir que o "capitão" tenha a possibilidade, em número previamente determinado de vezes, de apelar à visão de um lance pretendido. Como em casos idênticos ao que se passou com a decisão de Joubert e que evitaria a dúvida, consolidava o árbitro e teria impedido o disparate do comunicado. E a formação ordenada ou o pontapé de penalidade seria uma mera circunstância do jogo e falar-se-ia mais daquilo que importa: como é que não houve uma voz de comando escocesa - que pensou Laidlaw? – para garantir uma boa solução de conquista - primeiro de terreno e depois da bola - que evitasse o sufoco final? 

 

Mas não é só aqui que termina a responsabilidade da WR para o caso Joubert.

 

Existe um princípio fundamental que se retira da Lei 11.1 b) e que se traduz genericamente por "nenhum jogador pode tirar qualquer vantagem da sua posição ilegal". O que significa que qualquer jogador que esteja em fora-de-jogo não pode participar no jogo até ser colocado de novo em jogo - por acção própria ou do adversário. Até aqui tudo bem.

 

Mas na Lei 11.3 c) introduz-se um conceito em que se um adversário tocar intencionalmente na bola e não a agarrar colocará em jogo o jogador que, anteriormente, estaria em fora-de-jogo. E aqui é que a porca torce o rabo. Repare-se que com este conceito, um jogador que ficou para trás - dentro da área de 22 adversária, por exemplo - a apertar uma bota, pode ser colocado em jogo por um adversário que, ao carregar um pontapé, toque na bola e, satisfeito da vida, agarrar a bola e marcar ensaio. O que parece ser um rematado disparate porque para além de violar o princípio acima referido, faz com que o jogador que, legal, táctica e tecnicamente, procedeu correctamente corra um enorme risco. Ora a WR continua a fechar os olhos a esta questão que, aliás, é central no caso Joubert.

 

Na situação do jogo Austrália-Escócia, o árbitro Craig Joubert teve que julgar em milésimos se o australiano Phipps jogou ou não intencionalmente a bola. E em pior situação estava o pilar escocês Welsh que, no calor do combate, também tinha que resolver a mesma equação e decidir: agarro ou não a bola? E julga-se da intencionalidade com base em que critério?

 

A pergunta: porque é que a WR mantém um conceito de excepção nas Leis do Jogo que abre portas ao subjectivo livre-arbítrio - teve ou não intenção? - e portanto a decisões que podem ser mal interpretadas mas com consequências graves no jogo? E se a esta situação juntarmos as múltiplas áreas cinzentas que se mantêm nas Leis do Jogo e que apenas têm um outro conceito subjectivo - a materialidade - para as resolver, fácil é perceber que, para bem do jogo e por respeito a jogadores e espectadores, deveria haver um movimento de simplificação e clarificação. Porque a interpretação subjectiva deve ser tanto quanto possível afastada da interpretação da legalidade. Para que haja equidade.

 

Apesar de ser, desde sempre, um jogo colectivo de combate, o râguebi é cada vez mais rápido, com combates mais constantes e mais duros, decisões sob maior pressão e menos tempo e a complexidade das suas Leis do Jogo dificultam a sua execução e compreensão. O que contraria a pretensão da WR de desenvolvimento e extensão global.

 

Há tempos Steve Hansen, treinador principal dos All Blacks, apelava para que se tornassem as regras do jogo mais simples sob pena de desinteresse dos espectadores. De facto inúmeras vezes os espectadores - e também os jogadores - não fazem a mínima ideia porque foi marcada determinada falta. E mesmo com conhecimentos do código gestual da arbitragem, ficam cépticos das razões. Porque, repete-se, existem demasiadas áreas cinzentas que permitem o arbítrio subjectivo da interpretação do árbitro. O que em nada contribui para o crédito e prestígio do jogo ou para o respeito do papel do árbitro enquanto regulador. Papel que é essencial para que o jogo corra dentro do direito de igualdade de oportunidades e de comportamentos.

 

Que este "Caso Joubert" em que o árbitro Craig Joubert é o menos culpado, possa levar a WR a assumir as suas responsabilidades, simplificando as Leis do Jogo para que haja uma maior clareza, simplificando o trabalho do árbitro e para que, assim, jogadores e espectadores possam dar total crédito às suas decisões. Para que o jogo da vitória e da derrota esteja no patamar da qualidade técnica, táctica e estratégica das equipas e não na arbitragem. Ganhava o jogo e os milhões de apaixonados do râguebi.

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