O álbum de uma família em crise

Ma Vie Va Changer, de Patrícia Almeida e David-Alexandre Guéniot, é um livro de imagens construído na intimidade de uma família que se documenta a si e à turbulência que nos últimos cinco anos se abateu sobre ela e sobre Portugal. Agindo sobre o presente, enquanto aguarda o futuro.

Fotogaleria
Recortes de imprensa, fotos de família, imagens vernaculares: Ma Vie Va Changer é uma cápsula de um tempo difícil e uma forma de agir sobre ele DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR

Ao lado de crianças na praia, a ler, a comer, a dormir, a brincar, vêem-se rostos de políticos nacionais e estrangeiros. São imagens irreconciliáveis, contrárias; retratos ou documentos da turbulência que, nos últimos cinco anos, se abateu, com uma proclamada fatalidade, sobre Portugal. Quem tiver curiosidade pode apreciá-las em Ma Vie Va Changer, livro concebido e materializado entre 2011 e 2014 por um casal, a artista Patrícia Almeida e o programador David-Alexandre Guéniot. Objecto que se abre em quatro imagens, sugerindo ao leitor uma outra relação com as páginas, mostra uma experiência da crise. Sim, conhecemos aquele quotidiano. Ou, seguramente, conhecemos alguém que o vive(u). Há uma universalidade neste álbum de família que suspende o espectáculo, que nos convida a outra distância, que nos deixa respirar. E, talvez, continuar.

A ideia de fazer este livro assim surgiu pouco tempo depois do nascimento da GHOST, a editora fundada pelo casal. Ma Vie Va Changer vinha responder a um dos objectivos do projecto: criar formas de ver alternativas, contextos de atenção e de legibilidade para imagens que contrariassem o discurso visual da publicidade, dos jornais, da Internet. Mas existiam outras motivações para além das artísticas. “Este livro surgiu de um momento de urgência provocado pelo diagnóstico da doença da Patrícia e pela necessidade de nos posicionarmos perante uma situação colectiva”, diz David-Alexandre Guéniot. “De fora, através dos media, chegavam-no palavras do medo e da ameaça. Vivíamos em simultâneo a crise e a metáfora da crise, muitas vezes comparada a uma doença, a um disfuncionamento da sociedade."

Dar sentido e documentar o que estava a acontecer foram gestos guiados por interesses distintos: Patrícia Almeida começara a interessar-se pela pesquisa da linguagem das imagens utilizadas nos jornais para ilustrar os acontecimentos sociais e políticos; já Guéniot desenvolvia o gosto pela fotografia vernacular, sobretudo nas suas dimensões ritual e lúdica. “Queria trabalhar com os momentos em que uma pessoa se encena, brinca com ela própria, expõe e constrói a sua própria imagem." Ao fim de algum tempo, os dois perceberam que havia aspectos em comum, ligações: “A mesma vontade de questionar a imagem como documento deixado ao futuro." E então começaram "a acumular imagens": "Só em 2014 iniciámos a montagem."

O tempo parado
Ma Vie Changer, repita-se, está cheio de imagens. Há instantâneos de Patrícia, de David-Alexandre, do filho Gustavo, com os seus desenhos, as suas caretas, o seu olhar, as suas brincadeiras e as do seu amigo Gaspar. E, retiradas da imprensa, descobrem-se fotografia alusivas à entrada da troika em Portugal, na Grécia ou na Irlanda, aos movimentos dos cidadãos contra as políticas da austeridade, à Primavera Árabe, ao terramoto e desastre nuclear de Fukushima. “Fizemos os recortes de imprensa consoante a importância que íamos dando aos acontecimentos. A partir de certa altura, começamos a perceber que alguns aspectos se repetiam e fomos insistindo neles. Foi assim com as imagens genéricas dos líderes políticos e as que que ilustram conceitos da economia ou da finança.” Angela Merkel, Durão Barroso, o primeiro-ministro Passos Coelho, Sarkozy, Vladimir Putin convivem com contentores, carros, mãos com medicamentos, dinheiro a arder, barras de ouro, bancos.

Foto
DR
Foto
DR

Aos recortes foram-se juntando as imagens de outros trabalhos (por exemplo, My Life is Going to Change, de Patrícia Almeida que daria origem a uma instalação) e fotos de família. Os dois autores procuraram, entretanto, evitar certas leituras. Diz a artista: “Não queríamos que as associações entre as imagens se transformassem em comentários. Quisemos que as divergências em termos de linguagem, de técnica e estética, acabassem por se sobrepor, por convergir, sem entrarem num registo de denúncia ou de dramatismo." Esse fim foi alcançado. O tom que atravessa Ma Vie Va Changer não é conciliador, mas subsiste uma leveza, até um sentido de humor. A sequência das quatro imagens sobre cada página dupla e os movimentos que estas suscitam permitem a entrada num domínio que sendo privado é, ao mesmo tempo, familiar ao leitor. E, dado esse passo, ele recorda que não está sozinho, que integra uma comunidade. A edição em facsimile vem assegurar, velar essa passagem. “Cria uma relação entre o nosso álbum de família, único, íntimo, privado, e a sua reprodução, como objecto público, partilhado”, esclarece o programador. “A matriz do livro é nossa e foi feita através de um site [on-demand]. E o formato vem insistir na materialidade do livro. As imagens foram recortadas manualmente, as legendas traduzidas em inglês aparecem em post-its sobre as imagens. São fotografias de imagens, imagens intervencionadas."

É esta dimensão humana, analógica, “suja” que permite ao livro estabelecer um elo mais genuíno, ou apenas mais directo, com a realidade. Livro de família, Ma Vie Va Changer mostra-nos, inevitavelmente, um quotidiano habitado por crianças. “É um presente oferecido ao nosso filho Gustavo e ao seu amigo Gaspar para ser aberto em 2030”, revela Patrícia Almeida. “A presença do Gustavo permite criar a ficção de um tempo futuro, de uma cápsula temporal. O nosso tempo presente será o seu tempo passado, o tempo da sua infância."

O tempo de Patrícia e David foi o nosso, aquele em que tudo passou a ter um preço, em que só há lugar para aqueles que vencem. Uma crise de valores que o programador atribui aos efeitos da monetarização da vida, aos discursos da meritocracia e do empreendedorismo. À opressão de um ambiente sócio-político que reifica o homem como meio e mero devorador de objectos. “A sensação mais forte que me ficou desses anos”, diz Guéniot, “foi a de viver num país, numa sociedade sem futuro, onde o tempo parava no presente, e o dia de amanhã era deixado suspenso no ar. Havia um corte com o futuro e um corte com o passado, e a sensação de que o objectivo de vida passava por sobreviver dia-a-dia". Dito de outra forma: foi "o tempo dos noticiários”.

Uma forma de agir
Ma Vie Va Changer é pelo contrário um livro que não se resigna à sobrevivência. "Uma resposta activa, uma forma de agir sobre a representação que a propaganda do Governo português e os decisores da União Europeia fizeram dessa realidade. Não é um livro dramático ou triste, não dramatiza a crise. Contribui para a memória visual de um tempo, constitui um documento para os historiadores do futuro”, diz Patrícia.

No ano passado, o projecto encontrou o seu fim. O crescimento do arquivo ultrapassava a capacidade de síntese do casal e impedia o trabalho de edição. “Nunca foi nossa intenção fazer uma biografia, mas, se quiser, antes uma biópsia: extrair um pedaço da realidade social num dado tempo, fazer um instantâneo da História que acontecia em tempo real”, acrescenta Patrícia Almeida. Ei-lo agora finalizado, materializado num objecto que “vive” pela acção dos leitores e que se expõe ao diálogo com outros objectos, entre os quais, até pela coincidência cronológica, estão muito naturalmente a trilogia As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, em exibição nas salas de cinema, e o fotolivro Lisboa, Cidade Triste e Alegre, obra marcante da fotografia portuguesa, recentemente reeditada pela Pierre Von Kleist.

“Existe um ponto em comum com os filmes do Miguel Gomes”, admite Guéniot. “Trabalhamos a partir da actualidade, do que se passa hoje em Portugal. Existe uma aproximação documental à realidade da crise e a mesma motivação artística de desafiar a forma do documentário." Mas depois as estratégias são diferentes. Se Miguel Gomes vai ao encontro dos acontecimentos, da vida pública, Patrícia Almeida e David Alexandre-Guéniot refugiam-se na intimidade do lar. Um refúgio relativo. “O mundo exterior entra em casa através das notícias, das imagens recortadas nos jornais. E existem algumas imagens onde a casa encontra o acontecimento: são as fotografias onde aparecemos em manifestações. De resto estamos no nosso ambiente quotidiano, familiar, casual."

Com o livro de Victor Palla e Costa Martins, as afinidades esboçam-se de outro modo. Os propósitos e os conteúdos são muito diferentes. Ma Vie Va Changer não documenta tipologias sociais, nem pretende retratar a sociedade portuguesa, argumenta Patrícia: “Podemos definir ambos como ensaios visuais, mas Lisboa, Cidade Triste e Alegre tem um lado operático de arte total. Abraça uma realidade de forma transversal e poética. Mistura textos e imagens, tem páginas que se descobrem, com formatos diferentes. É um livro extraordinariamente lírico. O nosso não tem esse lirismo. Mas tem um lado cinemático, polifónico que também lá está."

Sugerir correcção
Comentar