Retrospectiva Zelimir Zilnik: da ex-Jugoslávia com amor

A sua obra é um extraordinário observatório não só sobre uma região específica – a Sérvia e o conjunto de estados anteriormente conhecido como Jugoslávia – mas também sobre a sua condição de “fronteira” da Europa “exclusiva”.

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O realizador em rodagem em 1968
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Rodagem em 1971

Zelimir Zilnik, sérvio nascido em 1942, é o autor em destaque na secção retrospectiva do DocLisboa 2015, com toda a sua obra a ser mostrada até ao fim do festival, em sessões na Cinemateca Portuguesa. Trata-se de um cineasta pouco ou nada conhecido em Portugal, mas mesmo em termos internacionais a sua obra, abundante e heteróclita, construída ao longo de cinco décadas (entre o final dos anos 60 e os nossos dias) muitas vezes a partir duma posição de marginalidade ou mesmo clandestinidade, só recentemente começou a ser vista e estudada com atenção, descobrindo-se nela, entre outras coisas, um extraordinário observatório não só sobre uma região específica – a Sérvia e o conjunto de estados anteriormente conhecido como Jugoslávia – mas também sobre a sua condição, não apenas simbólica, de “fronteira” da Europa, da Europa desenvolvida e “exclusiva”, da “fortaleza Europa” que periodicamente se revela em toda a sua contraditória força.

Não é por acaso que mencionamos este aspecto numa altura em que se vive a chamada crise dos “migrantes” ou dos “refugiados”: o filme mais recente de Zilnik, datado já deste ano de 2015, Logbook Serbistan (para ver dia 31 às 22h, na Cinemateca como todas as sessões a retrospectiva), reporta-se muito concretamente a este fluxo migratório e à Sérvia como local de passagem em direcção à Europa central. Mas outros filmes seus lembram que os fluxos migratórios sempre existiram na ex-Jugoslávia (durante o comunismo e depois dele), como o par formado por Fortaleza Europa e A Europa na Porta ao Lado (na mesma sessão de dia 31, 21h30), filmes de 2000 e de 2005 respectivamente, que evocam os efeitos sociais e económicos do endurecimento das restrições fronteiriças da Europa comunitária.

Zilnik também filmou o “outro lado”, a vida dos emigrantes jugoslavos, nos seus filmes alemães dos anos 70 quando teve que abandonar o seu país para poder trabalhar (como Inventur – Metzstrasse 11, hoje, sábado, 22h), ou na trilogia centrada nas desventuras de Kenedi Hasan, emigrante bósnio que saiu da Jugoslávia durante a guerra dos anos 90 (Kenedi Regressa a Casa, Kenedi Perdido e Encontrado, ambos no dia 26 às 19h com repetição no dia 30 às 22h; e Kenedi Casa-se, dia 26 às 21h30 e dia 30 às 18h30). É um sinal, entre outros, do forte compromisso político e social da sua obra, presente desde o início.

Zilnik integrou a corrente que ficou conhecida como a “vaga negra” do cinema jugoslavo, em finais dos anos 60, de que também fazia parte por exemplo Dusan Makavejev, que não tardaria a emigrar e a construir o grosso da sua obra no estrangeiro. Mal recebidos pelo regime (e “vaga negra” era originalmente uma expressão depreciativa), acusados de “propagar o derrotismo” e “desintegrar as forças progressivas da sociedade”, os filmes da “vaga negra”, e os de Zilnik em particular, são hoje um extraordinário documento sobre a vida no campo e nas cidades jugoslavas, de trabalhadores e de estudantes, na viragem dos anos 60 para os anos 70.

No ciclo, há uma sessão que reúne as primeiras curtas-metragens de Zilnik, todas feitas entre 1967 e 1971 (dia 29, às 15h30), e que constituem uma espécie de fundamento da sua atitude de questionamento da clivagem entre as promessas ideológicas do regime socialista e os seus efeitos práticos - há, por exemplo, essa raridade que é um filme, Os Desempregados, sobre o desemprego num regime socialista. E noutro dos filmes dessa sessão, Filme Negro, olhar sobre os sem-abrigo de Novi Sad em 1971, lança-se um dos procedimentos típicos do cinema de Zilnik, a roçar a performance ou o happening: a criação de uma situação (no caso, a recolha, pelo próprio realizador, de um grupo de sem-abrigos que alberga em sua casa) que não é apenas uma “situação de cinema”, tem um impacto mais imediato e directamente verificável – e que pode ser paradoxal e absurdo, como acontece em Tito Entre os Sérvios Pela Segunda Vez, um filme de 1994, estava a guerra jugoslava a estalar, em que Zilnik põe um sósia do Marechal Tito a caminhar pelas ruas de Belgrado e regista os diálogos entre ele e os transeuntes.

Se Zilnik deixou alguma marca na Alemanha Federal (os filmes, feitos em 75/76, que directamente evocam a questão do terrorismo em pleno apogeu Baader-Meinhoff, e que terão sido uma influência para A Terceira Geração de Fassbinder – hoje às 15h30 e dia 26 às 18h30) é essa reflexão “localizada”, regional, que avulta na sua obra. Regional, sem perder a medida das suas ligações, geográficas e políticas, ao resto da Europa, nem as suas consequências históricas: em Uma Mulher, Um Século (hoje, 18h30) é a condição historicamente nevrálgica dos Balcãs, ao longo do século XX, que está em foco; e em A Velha Escola do Capitalismo, um filme de 2009 (hoje, 21h30, e dia 27, 18h30), verificam-se, na sequência de vários filmes de Zilnik que documentam o tempo da transição da Sérvia para o pós-comunismo, os efeitos de choque causados – por exemplo nas condições e relações laborais – da adopção de um modelo económico capitalista. O paraíso, no cinema de Zilnik, não está em lado nenhum, a realidade e a sua força impõe-se sempre.

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