Loucura é não ouvir as canções de Lupicínio

Num concerto irrepetível e soberbo, Adriana Calcanhotto devolveu-nos a arte maior de Lupicínio Rodrigues, agora em CD+DVD.

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Em 2014 Adriana Calcanhoto viu-se chamada de novo ao palco para cantar o seu ilustre conterrâneo gaúcho. E mergulhou no seu vasto repertório LEO AVERSA

Mesmo que a vida costume zombar dos acasos, há alguns que fazem história. Em 2014, a Universidade do Rio Grande do Sul quis organizar um ciclo de cantores interpretando compositores gaúchos. Quando chegaram a Lupicínio Rodrigues, cujo centenário de nascimento então se celebrava, convidaram Adriana Calcanhotto. “Achei uma honra, ser lembrada como intérprete de Lupicínio. Pensei muito a minha relação com ele quando fiz O Micróbio do Samba, como ele sempre existiu na minha vida desde que nasci, todo o mundo o cantava, todo o mundo o ouvia… Era uma influência muito forte em mim, mas subreptícia, demorei a perceber isso.” O convite levou Adriana a estudá-lo, menos a vida do que a obra. Mas reteve alguma coisa da vida, também. “Gosto muito daquela história de que ele foi aposentado por invalidez porque estava inválido de amor. O chefe dele entendeu que ele estava inválido, incapaz, e aposentou-o por amor.”

Nascido em 16 de Setembro de 1914 em Porto Alegre (onde viria a morrer, 59 anos mais tarde, a 27 de Agosto de 1974), Lupicínio Rodrigues foi o primeiro dos 18 filhos de Francisco e Abigail Rodrigues. Talvez por isso o pai tivesse pressa: depois de o baptizar com o nome de um herói da Primeira Guerra Mundial, quis pô-lo na escola aos cinco anos (de onde foi devolvido pelos professores, por só “brigar e cantarolar”, voltando apenas aos sete), fez dele aprendiz de operário aos 12 e despachou-o para o exército aos 15, como “voluntário”, falsificando-lhe a idade para 18 em documentos duvidosos. Tudo isto daria um samba, mas ele fez centenas. Cantou na escola, cantou no exército, e depois não fez mais do que compor e cantar pela vida fora. O nome dos seus intérpretes chega para fazer uma pequena enciclopédia da música brasileira: Francisco Alves, Ciro Monteiro, Jamelão, Felisberto Martins, Caco Velho, Moreira da Silva, Orlando Silva, Linda Batista, Luiz Gonzaga, Nora Ney, Elza Soares, Elis Regina, Arrigo Barnabé, mas também João Gilberto, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Paulinho da Viola, Cazuza, Zizi Possi… E em 1996 Zuza Homem de Mello idealizou Lupicínio às Pampas, espectáculo com nomes como Paulo Moura, Luiz Melodia e… Adriana Calcanhotto.

Lábios vermelhos
Isso foi há quase duas décadas. Mas em 2014 ela viu-se chamada de novo ao palco para cantar o seu ilustre conterrâneo gaúcho (também Adriana, como aliás Elis, nascera em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul). E mergulhou no seu vasto repertório. “Fui ouvir as gravações dele. Mas algumas que me marcaram muito na adolescência, como Maria Bethânia cantando Loucura, essas não quis ouvir, porque achei que me iam atrapalhar. Não ouvi o trabalho do Arrigo Barnabé, nem o que a Gal fez. Senti-me melhor assim. Fui inventando a banda aos pouquinhos e a sonoridade foi sendo criada.”

A banda de que fala Adriana é um punhado de músicos notáveis, que estiveram com ela no Salão de Atos da UFRGS, a 4 de Dezembro de 2014, no espectáculo (único) a que foi dado o nome de Loucura, uma das canções mais célebres de Lupicínio (Loucura é também o nome do CD+DVD gravado nessa noite): Dadi Carvalho (violão e produção musical), Cézar Mendes (violão), Alberto Continentino (contrabaixo), Jessé Sadoc (trompete, flugelhorn), Jorge Ribeiro (mesas, cadeiras, copos, vassoura) e os convidados Arthur Nestrovski (violão), Cid Campos (dobro) e Arthur de Faria (acordeão). Adriana surge de smoking, sapatos pretos de verniz e laço, que Lupicínio usava alternadamente com gravata. “Ele usava mais gravata. Mas como eu fui de gala, escolhi o laço. Se tivesse virado as canções para o feminino, teria ido de vestido de gala.” Os lábios pintados de vermelho são, como ela explica também no making of que integra o DVD, uma citação de um episódio rocambolesco. Um dia, Caetano Veloso quis ir conhecer pessoalmente Lupicínio e saiu a correr de um espectáculo seu, onde pintava os lábios com bâton para imitar Gal Costa. Simplesmente, esqueceu-se de os limpar e foi falar com Lupicínio com os lábios em vermelho vivo. “O Caetano conta muito isso. O que eu acho interessante, nessa história, é que não é esperado: vir um rapaz de cabelo grande, solto, de bâton vermelho, e o Lupicínio achar aquilo normal. Ficamos surpreendidos.”

Como num teatro
“Eu agradeço as homenagens que vocês me fazem/ Pelas bobagens e coisas bonitas que dizem que eu fiz”. São estas as primeiras palavras cantadas por Adriana no espectáculo, de Homenagem. Mas as que fazem a sua fama de compositor de canções de “dor-de-cotovelo” também estão lá, como Loucura, Castigo, Vingança, Judiaria, Nunca, todas de títulos breves, incisivos como punhais. A escolha de Adriana, que reuniu no final 17 canções para este trabalho, foi feita de entre muitas. “Nessa coisa, que eu sempre digo, de que a canção precisa de gostar do intérprete, eu ainda fui para o ensaio geral com mais duas que acabaram não entrando. Parte-se de uma coisa maior e elas depois vão-se ajeitando. A parte dolorosa é deixar coisas muito bonitas de fora, mas tem que ser.”

O cenário é, de certo modo, um teatro. Adriana puxa de uma cigarrilha, acende-a, fuma-a, deixa-se escorregar para o chão e canta deitada em Volta, interpreta com voz e gestos e nisso presta a Lupicínio a homenagem de também o caracterizar como se renascesse. “No ensaio eu não tinha cigarrilha, mas pedi uma e um cinzeiro. Não sabia bem se ia usar, se não ia, mas acabei usando. A fumaça acabou sendo um efeito especial…”

Quem vir o DVD, que capta soberbamente o espectáculo, não perca dois momentos “fora de cena”: Adriana a cantar o impagável Quindim de mulher (ela ao violão e Domenico Lancelloti, que a entrevista, a tocar caixa de fósforos, isto no final do making of) e uma versão electrónica de Cenário de Mangueira, sem truques, no segundo extra.

Não sendo os amores sofridos e trágicos (que marcam Lupicínio) distintivos da carreira musical de Adriana, ela entrou nesse mundo com cuidado mas algum à-vontade. “Ele morreu em 1974. No ano de 1984, eu comecei a tocar na noite, em Porto Alegre, junto com essas pessoas que estavam perto dele. O meu pai chegou a conhecê-lo. Acho que tem a ver com essa passagem. Claro que há a vontade de, sendo eu intérprete, entrar nesse universo riquíssimo que é o dele. Mas esse meu começo conta um pouquinho.”

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