Norma feita à medida pela Câmara de Lisboa poupou meio milhão de euros ao BES

As obras daquilo que era para ser a ampliação da sede do BES começaram recentemente. O alvará foi levantado em Fevereiro, depois de os promotores pagarem 128 mil euros à câmara. Não fosse uma norma proposta por António Costa, em 2010, teriam pago para cima de 650 mil.

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Os edifícios da Rosa Araújo já estão parcialmente demolidos Nuno Ferreira Santos

Uma acesa controvérsia sobre o licenciamento de um grande edifício que o Banco Espírito Santo pretendia erguer na Av. da Liberdade e na Rua Rosa Araújo, para alargamento da sua sede, foi resolvida em 2010, na Câmara de Lisboa, com a aprovação de uma norma destinada a acabar com as dúvidas suscitadas por um regulamento municipal. Essa norma interpretativa, proposta ao executivo camarário por António Costa, e oriunda dos serviços do vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, poupou mais de meio milhão de euros ao BES. 

No entanto, um parecer do Departamento Jurídico da câmara emitido um ano depois, e agora revelado pelo PÚBLICO, permite concluir que, se a câmara tivesse inicialmente agido como devia, o BES teria pago mais de 650 mil euros pela licença de obras, em vez dos 128 mil que foram pagos em Fevereiro deste ano.

O processo relativo à construção do edifício, que deveria substituir os quatro prédios ali existentes, foi entregue na câmara em 2006 e recebeu o número 1492/EDI/2006. A licença de construção, todavia, só foi emitida em Fevereiro de 2015, depois de o Novo Banco ter vendido os imóveis a uma empresa imobiliária por cerca de 30 milhões de euros.

As obras foram recentemente iniciadas, estando em curso a demolição de três daqueles prédios, dois dos quais terão de manter as respectivas fachadas. O quarto, que ocupa o gaveto formado pela Av. da Liberdade e pela Rua Rosa Araújo, será ampliado com mais dois pisos, mantendo-se o edifício existente, de seis pisos, cujos interiores serão totalmente reformulados. 

A aprovação do projecto apresentado em 2006 dependia, antes de mais, da aprovação prévia de um pedido de loteamento/emparcelamento dos quatro prédios (processo 53/URB/2006). Em Setembro de 2008, um ano após a posse do primeiro executivo chefiado por António Costa, o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, propôs à câmara o deferimento deste pedido.

O início da polémica
Criticado por toda a oposição e pelos vereadores dos Cidadãos por Lisboa (CPL), mas também pela Estrutura Consultiva do Plano Director Municipal, que emitiu um parecer desfavorável, o loteamento foi então rejeitado por maioria, recebendo apenas os votos a favor do PS. Cerca de um ano depois, em Agosto de 2009, o BES desistiu do loteamento e requereu o arquivamento desse processo, cuja aprovação era condição sine qua non para o licenciamento das obras.

Para os vereadores da oposição e para a então vereadora Helena Roseta, dos CPL, o processo de obras (1492/EDI/2006), que inclui o projecto de arquitectura, tinha simplesmente ficado sem efeito com o arquivamento do processo de loteamento. O BES teria de começar tudo de novo, e agora à luz do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa (RMUEL), publicado em Janeiro de 2009.

Esta posição saiu reforçada quando o BES, no mesmo mês em que pediu o arquivamento, apresentou à câmara um conjunto de elementos que, segundo todas as informações dos técnicos municipais, “configuram a substituição integral” do processo de obras de 2006 e constituem “uma nova versão do projecto de arquitectura”. 

Ao contrário, para os vereadores do PS, para os serviços tutelados por Manuel Salgado e para o BES, atendendo nomeadamente às alterações legislativas entretanto publicadas, que faziam cessar a dependência do licenciamento das obras da aprovação do loteamento, a nova versão do projecto representava apenas o prosseguimento do processo 1492/EDI/2006. 

A divergência não era de somenos. De um entendimento ou do outro dependia que o licenciamento das obras fosse apreciado com base no RMUEL, que entrara em vigor meses antes da entrega da nova versão do projecto de arquitectura do BES, ou do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), publicado em 1999.

Os defensores da primeira tese sustentavam assim que a nova versão do projecto  teria de ser analisada no quadro de um novo processo e por isso tinha de obedecer ao RMUEL. Do outro lado, argumentava-se que o processo de 2006 se mantinha e não podia ser submetido às regras do novo regulamento — uma vez que este excluía expressamente os procedimentos iniciados antes da sua entrada em vigor.

Caso vencesse a primeira posição, o licenciamento estaria sujeito ao pagamento de elevadas compensações monetárias ao município, que os vereadores do PSD estimaram em cerca de 650 mil euros. Se fosse adoptado o segundo entendimento, o promotor pagaria muito menos, poupando mais de 500 mil euros, tal como veio a acontecer.

Apreciada pelos técnicos dos serviços de Urbanismo da câmara, a nova versão do projecto encontrou uma vasta gama de objecções tal como já encontrara a versão inicial. Apesar dessas objecções, rapidamente ultrapassadas pelos pareceres e despachos das chefias, e das críticas da oposição, o vereador Manuel Salgado submeteu o processo à votação do executivo municipal em  Março de 2010.  

Na discussão da proposta, confrontado com as críticas da oposição ao facto de nela se afirmar que o processo não estava sujeito ao RMUEL, Manuel Salgado surpreendeu toda a gente, garantindo o contrário. Ou seja: assegurou que o pedido de licenciamento tinha de ser enquadrado no RMUEL e que a obra era “obviamente equivalente a um loteamento”, pelo que tinha que “pagar a compensação urbanística”.

O “erro” de Salgado e a norma de Costa
Conforme se lê na transcrição da gravação do debate, o responsável pelo Urbanismo afirmou mesmo que a referência à não sujeição ao RMUEL estava “errada” e comprometeu-se a retirar o nº 8 da proposta por ele assinada e que dizia isso mesmo.

Nessa intervenção, a propósito das críticas da oposição ao projecto do BES, Salgado não deixou de sublinhar que lhe fazia “muita confusão” o facto de se “bloquear novas construções na cidade”, por “questões destas”, “quando uma instituição tem capacidade para investir e quer ampliar a sua sede”.

Passados quatro meses, a 28 de Julho, e perante novas informações dos serviços camarários que punham de lado todas as reservas da oposição quanto à legalidade de algumas soluções do projecto invocando sistematicamente normas excepcionais dos regulamentos, Salgado levou mais uma vez a proposta à câmara.  

Mas contrariamente ao prometido, o ponto 8 manteve-se inalterado. Por essa e por outra razões a proposta foi chumbada pelos votos do PSD, CDS, PCP e de Nunes da Silva, um dos vereadores dos CPL. Helena Roseta absteve-se. Só o PS votou a favor.

Desta vez, contudo, a maioria socialista tinha salvaguardado a sua posição quanto à manutenção do ponto 8 e ao entendimento de que o RMUEL não era aplicável a este processo. Duas semanas antes, por proposta de António Costa, o executivo aprovou por maioria, com os votos contra do PSD e do CDS, uma norma interpretativa do RMUEL retroactiva à data da entrada em vigor deste regulamento, em Janeiro de 2009. 

De acordo com esta norma — que ao contrário do regulamento que ela interpreta não foi submetida à aprovação da assembleia municipal — o RMUEL não se aplica aos processos iniciados antes da sua publicação, tal como constava do texto do regulamento.  A novidade introduzida está em que a interpretação proposta por Costa diz que o regulamento não se aplica a esses processos “independentemente das alterações” que os projectos tenham sofrido, e “desde que de tais alterações não resulte o aumento da superfície de pavimento pretendido”.

Desta interpretação resultou automaticamente que a obra do BES não podia ser abrangida pelo RMUEL.

Na sua declaração de voto contra a proposta de Salgado, o PSD, tal como outras forças da oposição, insurgiu-se contra a consagração da não aplicação do RMUEL ao processo por via daquela norma interpretativa. Na opinião dos vereadores social-democratas, a câmara estava a usar um “estratagema” para que o projecto do BES escapasse às regras do RMUEL, recorrendo a uma “‘engenharia procedimental’ sem suporte legal” que “prejudica o interesse público, na medida em que o requerente não fica obrigado a efectuar cedências e/ou a pagar compensação urbanísticas”. De acordo com o PSD,  o prejuízo esta opção “prejudicará o município em cerca de 650 mil euros”.

Na mesma reunião, o vereador do CDS, António Carlos Monteiro, classificou a aprovação da norma interpretativa como “uma forma ardilosa de procurar arranjar uma solução à medida deste projecto”.

Helena Roseta, por seu lado, fez constar na declaração em que anunciou
a sua abstenção: “este projecto tem de obedecer ao RMUEL e portanto, se não for esse o entendimento da proposta, não poderemos votar a favor”.

A exposição do BES e o recuo do PSD
Reagindo ao chumbo da proposta, o BES dirigiu uma exposição ao presidente da câmara na qual salienta que, se dúvidas houvesse quanto à não aplicação do RMUEL neste caso, “tais dúvidas teriam ficado totalmente dissipadas depois da deliberação da Exmª câmara proferida em 14 de Agosto de 2010” — aquela que aprovou a norma interpretativa proposta por António Costa. 

Foi esta exposição que esteve na origem da reapreciação do processo pelos serviços da câmara. Na informação produzida, invoca-se igualmente aquela norma interpretativa, em apoio da tese da inaplicabilidade do RMUEL, e propõe-se novamente a aprovação do projecto.

E foi assim que a proposta regressou à câmara em Dezembro de 2010, com uma diferença introduzida para conseguir o apoio dos vereadores do PSD, então liderados por Santana Lopes. Na nova redacção, Salgado propôs que o deferimento final do processo e o licenciamento das obras ficasse condicionado a um parecer sobre “a questão das compensações” devidas ou não pelo BES, a elaborar pelo Departamento Jurídico (DJ) da câmara.

Com esta garantia de que seria esse parecer a determinar se o processo estava ou não sujeito ao RMUEL, ou seja, se tinha ou não de pagar os 650 mil euros de compensações, o PSD absteve-se, sendo a proposta aprovada apenas com os votos favoráveis do PS. CDS e e PCP votaram contra e os CDL abstiveram-se.

Já a polémica estava esquecida quando, um ano depois, tudo se resolveu com a aprovação do prometido parecer do DJ. A data de início do processo a ter em conta era a de 2006, pelo que não se lhe podia aplicar o RMUEL  — consideraram os juristas da câmara, subscrevendo a opinião de Salgado e do BES.

O parecer e o despacho de concordância da directora do departamento arrasaram no entanto a condução de todo o processo nos serviços de Urbanismo,  indo ao encontro das teses da oposição. “Em bom rigor, após a rejeição da proposta de deferimento do processo 53/URB/2006”, relativo ao loteamento/emparcelamento, e após “a desistência do promotor” em relação a esse processo, em Agosto de 2009, “os serviços deveriam ter promovido o arquivamento do processo 1492/EDI/2006”, e “a constituição de novo procedimento de edificação”.

Se isso tivesse ocorrido, o licenciamento das obras só poderia acontecer através do novo processo, com um novo número, o qual estaria indiscutivelmente sujeito ao RMUEL, em vigor desde o início de 2009.

Nesse caso, segundo as contas do PSD, o BES teria de pagar 650 mil euros de compensações. Assim, feitas os cálculos pelo serviços de Urbanismo em 2012, no seguimento da aprovação do parecer do Departamento Jurídico, teria de pagar apenas 128.074 euros. Três anos depois, já o BES havia desaparecido, o Novo Banco vendeu os prédios à imobiliária Liberdade 2013 e foi esta, em Fevereiro passado quem pagou os 128 mil euros para levantar o alvará e iniciar as obras.

Habitação de luxo em vez de escritórios previstos no alvará
Além das compensações urbanísticas devidas pela realização das obras projectadas, o outro motivo que levou a oposição a chumbar várias vezes o projecto do BES prendia-se com o facto de este pretender que o novo edifício fosse integralmente ocupado com escritórios (para ampliação da sua sede) e comércio. 

A oposição invocava uma norma que obrigava a que parte dele incluísse pelo menos 50% de habitação, porque alguns dos prédios então existentes nunca tinham sido licenciados para serviços, O promotor e a maioria camarária rejeitavam porém essa interpretação, alegando que, na prática, todos os prédios estavam há muitos anos ocupados com escritórios.

O projecto aprovado excluía assim a construção de qualquer habitação e foi esse projecto que foi licenciado, com alvará emitido em Fevereiro deste ano. Conforme se lê no aviso agora afixado na obra, o alvará contempla apenas a construção de um edifício de comércio e serviços.

No local, porém, já está instalada uma das mediadoras imobiliárias que tem a seu cargo a venda dos 44 apartamentos de luxo e das 9 lojas que ali vão surgir. O site dos novos donos do empreendimento (a empresa Liberdade 203)  fornece detalhes sobre o projecto e mostra mesmo imagens do que será o interior dos futuros apartamentos.

Afinal, a longa batalha do Banco Espírito Santo e dos serviços da câmara para conseguirem aprovar a construção de um grande edifício de escritórios, com mais de 10 mil metros quadrados de superfície de pavimento, não serviu de grande coisa ao BES e a quem lhe sucedeu. 

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