E se Proust se tivesse ficado pela torrada?

A descoberta da emblemática madalena foi um processo para o autor de Em Busca do Tempo Perdido. As Éditions des Saint-Pères lançaram esta quinta-feira três cadernos que mostram a evolução de uma das passagens mais emblemáticas da literatura contemporânea.

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“O manuscrito das pequenas madalenas” Éditons des Saint-Pères

Tornou-se comum chamar “madalena de Proust” a qualquer experiência sensorial que espolete uma memória involuntária. Porque é universal a imagem do pedaço de bolo embebido em chá que arrasta atrás de si toda a narrativa de Em Busca do Tempo Perdido. Mais de um século volvido sobre a publicação do primeiro volume de uma das mais importantes obras da literatura ocidental ficamos a saber como Marcel Proust hesitou.

Uma torrada com mel, uma bolacha, e, só depois, uma madalena: foi esta a evolução do motor fundamental para o desenrolar dos sete tomos que Proust escreveu entre 1906 e 1922 e que foram publicados entre 1913 e 1927.

Lançado a 14 de Novembro de 1913, o primeiro desses tomos, Do Lado de Swann teve um rascunho de 1910 em que era um pedaço de bolacha que o jovem narrador de Combray comia embebido em chá. Teve também uma versão em que era um pedaço de torrada com mel.

As várias versões surgem nos trechos de rascunhos escolhidos e coligidos em três cadernos lançados esta quinta-feira em França pelas Éditons des Saint-Pères. Três Moleskine negros numa edição especial de mil exemplares encadernados e embalados à mão (custam 249 euros e podem ser encomendados online no site da editora).

O primeiro dos cadernos, Le manuscrit du pain grillé (“o manuscrito do pão torrado”, em tradução livre), contém a primeira de todas as versões do “episódio da madalena”, datada de 1908 – é a versão da torrada com mel. No segundo caderno, Proust recomeça, dessa vez com um biscotte. No terceiro, intitulado Le manuscrit des Petites Madeleines (“o manuscrito das pequenas madalenas” junta duas vozes: a de Proust e a do seu copista, num diálogo sobre o trabalho da escrita.

"Estes três cadernos inéditos permitem voltar à genealogía literária do momento mais emblemático do universo proustiano", diz a editora em comunicado. No seu site, as Éditons des Saint-Pères explicam também o seu “amor pelos manuscritos, os objectos raros e preciosos” da literatura: “Enquanto o digital avança, nós dedicamo-nos a restaurar a magia da escrita enquanto veículo de um acesso mais intimo e comovente à obra e ao seu autor.”

Do Lado de Swann foi originalmente rejeitado por várias editoras, como as prestigiadas Fasquelle e a N.R.F. – “não consigo compreender como um cavalheiro gasta trinta páginas a descrever as voltas e reviravoltas que dá na cama, antes de adormecer”, disse um dos editores. “É certo que o projecto de Proust era desconcertante”, escreveu o escritor António Mega Ferreira no PÚBLICO, num texto intitulado Um romance em forma de vida, a propósito do centenário da obra. “O que ele queria escrever, leitor assíduo e fervoroso da obra de Henri Bergson, era ‘um romance sobre o Tempo’, o tempo vivido, presentificado, por oposição ao tempo físico, sucessivo. Para tal, recorreria à ‘memória involuntária’, essa espécie de capacidade potencial para tornar presentes todas as coisas passadas, despertada do seu sono por uma espécie de irradiação mnésica contida nas próprias coisas que alguma vez fizeram parte da nossa história pessoal.”

Do Lado de Swann, diz Mega Ferreira, “é o prólogo voluptuoso de uma ópera wagneriana, em que tudo - a música, a poesia, a pintura, a filosofia, as cores e a Natureza, os sentimentos e as aspirações, e os sentidos, todos os sentidos - é convocado sinestesicamente para preencher o espaço da consciência do Narrador e modelar o Tempo da sua vida, através da escrita do romance”.

Neste primeiro dos sete tomos estão já, diz o escritor, todos os temas fundamentais de Em Busca do Tempo Perdido: “a rigidez social das castas e as estratégias aspiracionais da burguesia; a condição judaica e a homossexualidade; a culpa edipiana do Narrador e a perspectiva sempre adiada da expiação; o amor e o ciúme; a sinceridade e a hipocrisia; a ‘universalidade do desejo’ e o hábito; a perda e a libertação; o diletantismo e a criação; a busca da Beleza e a revelação pela Arte”.

Nos manuscritos das Éditons des Saint-Pères, acompanham-se as hesitações e evoluções, as rasuras e anotações relativas à evolução desse imaginário rumo à formulação final.

 

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