Sempre a olhar para o presente, a competição internacional do Doc desenha futuros possíveis

Entre forma e conteúdo, utopia e testemunho, os filmes do concurso internacional são outros tantos pontos da situação do futuro do documentário. Um desafio para o espectador.

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O Futebol, um retrato de um pai que não sabe como ser pai e de um filho que não sabe como ser filho
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88:88 é um bicho indefinível, turbilhão de sons e imagens sobrepostos e dessintonizados, reflectindo a experiência desassociada da juventude contemporânea
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My Talk with Florence , o longo e sentido depoimento de Florence Burnier-Mauer sobre os 20 anos que viveu no interior de uma seita de culto

A competição internacional do DocLisboa 2015 tem um grande problema para resolver. É que, depois de Bella e Perduta, que tem igualmente honras de filme de abertura, é sempre a descer. Não porque não haja outros bons filmes no concurso – que os há, e não são poucos. Mas porque a fasquia ficou tão alta que, depois da obra-prima de Pietro Marcello, não há como a ultrapassar.

Ao mesmo tempo, Bella e Perduta será talvez um dos títulos mais acessíveis de toda a competição, e propõe uma “síntese” das traves-mestras que norteiam a escolha dos programadores e, de modo mais lato, as questões formais e práticas que trabalham hoje o documentário.

Não é segredo que é no documentário que se encontram hoje alguns dos caminhos mais ousados e apaixonantes da sétima arte, graças a cineastas que têm forçado as fronteiras do género em três direcções distintas mas complementares. De um lado, a “ficção do real”, aplicando técnicas do cinema narrativo; de outro, o “documentário de criação”, mais ensaísta e formalista; finalmente, a reinvenção e reactualização do filme-testemunho.

A selecção internacional explora estas três vias, ciente de que todas elas contribuem para desenhar um retrato mais preciso do estado do mundo em que vivemos e para pensar melhor o modo como olhamos para ele.

Este ano, esse olhar é crescentemente desafiador, começando pela decisão de abolir categorias de duração e olhando para cada caso como um caso, independentemente de ser curta ou longa-metragem (embora, paradoxalmente, seja nos formatos longos que encontramos os títulos mais apaixonantes).

Talvez decorrendo das convulsões sociopolíticas globais dos últimos anos, muitas das escolhas abordam, directa ou enviesadamente, a ideia da relação urgente mas também desencantada entre utopia e realidade, entre activismo e sistema. Bella e Perduta reflecte isso na sua notável amálgama de investigação, criação, narrativa e testemunho, onde o que fora pensado como registo de um novo activismo localizado dá lugar a uma exploração do papel histórico da memória cruzada com uma fábula sobre o equilíbrio entre o Homem e a Natureza, entre o pessoal e o colectivo.

Não é outro o impulso que anima um dos objectos mais “fora do baralho” da competição. Balikbayan #1 – Memories of Overdevelopment Redux de Kidlat Tahimik (City Campo Pequeno, domingo 25 às 16h45 e quinta 29 às 19h30), “pai” do cinema independente filipino, mapeia a viagem impossível de um filme inacabado sobre um pagem filipino que teria dado a volta ao mundo com Fernão de Magalhães. A partir do material rodado entre 1979 e 1983 para esse projecto, Tahimik cruza-o com uma segunda história que repete a viagem em sentido inverso nos nossos dias, para terminar num olhar para os bastidores da rodagem e para o que foi acontecendo na vida do cineasta ao longo desses 40 anos. A ficção é aqui um modo de falar de uma parte da cultura e história filipinas, cruzada com a vivência específica do seu criador, propondo uma resposta lúdica e amadora à questão do que pode ser um documentário num filme onde a verdade parece mais fantástica do que a ficção.

É também no território indistinto entre registo e criação que se coloca o brasileiro radicado em Espanha Sérgio Oksman. O Futebol (Culturgest, amanhã às 22h, e São Jorge, domingo 25 às 16h45), a sua primeira abordagem à longa depois de várias curtas premiadas, é um peculiaríssimo exercício de revelação da verdade através da ficção. Aparentemente registo de um mês em São Paulo para visitar o pai com quem não convivia há décadas durante o Mundial de 2014, O Futebol baralha as cartas até não se perceber o que é pensado e o que é espontâneo, mas trazendo ao de cima nesse processo um retrato, por interposta câmara paciente e metódica, de um pai que não sabe como ser pai e de um filho que não sabe como ser filho.

O Futebol revela aos poucos ter uma estrutura formal muito pensada. Essa dimensão formalista é uma das questões centrais da selecção competitiva, explorada eficazmente e de múltiplas maneiras; o catálogo de possibilidades do lúdico Diario di un Corto da argentina Flavia de la Fuente (Culturgest, 2ª 26 às 19h e São Jorge, 4ª 28 às 22h30); o sublime exercício de falso-documentário de Manuel Mozos A Glória de Fazer Cinema em Portugal (São Jorge, domingo 25 às 22h e City Campo Pequeno, 3ª 27 às 19h45); o poema tonal atmosférico de Dead Slow Ahead do espanhol Mauro Herce, espécie de resposta audiovisual aos discos ambientais de Brian Eno (São Jorge, 5ª 29 às 22h e City Campo Pequeno, 6ª 30 às 18h15).

Em Matériaux de Hongrie (Culturgest, 4ª 28 às 21h45 e City Campo Pequeno, sábado 31 às 15h30), a artista e realizadora francesa Noëlle Pujol põe em prática uma velha ideia do pensador Jean-Claude Biette: criar um filme que seja puro registo de momentos, alinhando planos sem preocupação narrativa ou formal. A sua experiência “recicla” material rodado em 2003 para um outro projecto mas revela limitações que a tornam uma utopia mais apropriada para uma instalação audiovisual do que para um filme. O austríaco Paul Poet consegue escapar a esse destino em My Talk with Florence (São Jorge, 2ª 26 ás 21h30 e City Campo Pequeno, 4ª 28 às 18h30) pela força do seu conteúdo: o longo e sentido depoimento de Florence Burnier-Mauer sobre os 20 anos que viveu no interior da comuna utópico-artística mista de seita de culto do artista Otto Mühl, apresentado em bruto, sem montagem, num dispositivo que remete para o Fengming, de Wang Bing.

Mas nenhuma dessas experiências atinge o patamar de ruptura do primeiro ensaio na longa-metragem do canadiano Isiah Medina. “88:88” é o que se vê nos mostradores digitais quando os aparelhos reiniciam após um corte de energia, e Medina usa essa ideia como base de um filme que literalmente inventa uma maneira pós-narrativa, pós-linear, de pensar o objecto-filme. 88:88 (Culturgest, 2ª 26 às 19h e São Jorge, 4ª 28 às 22h30) é um bicho indescritível e indefinível, turbilhão de sons e imagens sobrepostos e dessintonizados, reflectindo a experiência desassociada de uma juventude contemporânea que não se revê na realidade social que a rodeia, questionando se a linguagem tradicional do audiovisual narrativo ainda pode fazer sentido hoje. Será isto ainda um filme? É uma pergunta que está sempre a pairar por entre uma competição que desenha futuros possíveis sempre a olhar para o presente.

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