Alguém que vá procurar cavalos
Mais duas novelas de J.D. Salinger — mais duas charadas de um escritor-charada.
Jerome David Salinger, escritor venerado principalmente pelo seu romance À Espera no Centeio, fulgurante livro de aprendizagem numa América que sempre se mostrou voraz na busca de um exemplo (de vitalidade, de perversidade, de criatividade) — quantos mancebos não terão investido pela selva nova-iorquina (ou outra) seguindo o rasto do “herói”, Holden Caulfield? —, foi, na sua magnífica reclusão, um perpétuo e inquieto pesquisador das questões metafísicas. Há quem veja, nos seus escritos, o traço voluntarioso de uma religiosidade peculiar; os mais devotos reconhecem nele a evolução de um místico, enquanto criador de personagens embrenhadas na procura da inocência perdida, e nesse sentido cada vez mais distantes do cinismo de Caulfield.
A viagem que Salinger empreendeu — da trepidação da fama no ritmo infernal da sua cidade natal, que lhe garantiu por uns tempos um estatuto de vedeta, para a reclusão num lugar incaracterístico, onde passou a maior parte da sua vida — reflecte-se nas histórias da fictícia família Glass (todas, menos uma, publicadas na revista New Yorker) e está portanto presente em Franny e Zooey, em Nove Histórias (onde Seymour Glass surge pela primeira vez, no conto A Perfect Day for Bananafish) e nestas duas novelas, Levantai Alto o Pau de Fileira, Carpinteiros e Seymour: Uma Introdução, publicadas em conjunto em 1963. À boa maneira de Salinger, tanto uma como outra se desenrolam como uma charada, fixando determinados acontecimentos posicionados num tempo não-cronológico e direccionados para um ponto-chave, a interligação entre os membros de uma família meio judia, meio irlandesa: a de Les e Bessie Gallagher Glass, actores de comédia reformados, e dos seus sete rebentos que, desde tenra idade, participam nos espectáculos radiofónicos dos progenitores e se habituam a deixar recados uns aos outros no espelho do armário dos remédios. Em 1942, no dia do casamento de Seymour, a irmã, Boo Boo, mantém a tradição e aplica-se a escrever com minúcia as palavras que dão o estranho título ao primeiro conto deste volume e que ela retirou de um poema de Safo, composto exactamente para celebrar um enlace matrimonial. Seymour (“see-more-glass”, filho de “less-glass”) é, tal como o seu criador, um leitor voraz desde criança, um devorador de tudo a que pode deitar mão, dos Evangelhos cristãos a Tao Te Ching (O Livro do Caminho e da Virtude é uma espécie de guia), de Sören Kierkgaard a Tchéhkov, da elegante e sensual poesia da décima Musa à filosofia platónica. É uma personagem sempre presente — mesmo quando já está morto, como em Franny e Zooey — e a sua sombra, a sua sabedoria, a sua quase santidade projectam-se sobre toda a família. Em Levantai Alto o Pau de Fileira, Carpinteiros, o narrador é o seu irmão Buddy, o único do clã a comparecer no casamento, com os outros membros dispersos, em consequência da guerra. Buddy consegue uma licença precária, chega a uma Nova Iorque irrespirável de calor com o seu uniforme amarrotado e uma tosse sufocante, e corre para a igreja, onde a noiva e os convidados esperam pelo noivo, que não comparece. Ficamos a saber que o enigmático, perturbado e problemático Seymour deixa a bela Muriel aos pés do altar por uma razão: “sente-se demasiado feliz” para levar a cabo o enlace. Arrastado por alguns dos convidados, Buddy passa por uma sucessão de acontecimentos bizarros, descritos com a ironia e a contenção próprias do autor que, como é do conhecimento geral, foi um grande apreciador de Kafka.
Salinger, que esteve na Europa durante a Segunda Guerra Mundial e regressou com fortes sintomas de stress pós-traumático, passou mais de uma década –— os anos 50 — ocupado com a figura de Seymour, o rapaz que se faz homem com as sequelas da guerra, o contraponto angélico do adolescente Holden Caulfield, perpétuo rebelde contra a “falsidade dos adultos”. Seymour, pelo contrário, é o homem maduro perfeito, luminoso e sombrio, complexo e desarmante, real e imaginado, que enfrenta o caos da existência com um misto de perplexidade, debilidade, sabedoria e serenidade. No segundo texto deste volume, o seu mais pungente “biógrafo”, (de novo) o irmão Buddy, escreve e reescreve uma litania de observações que reflectem a sua luta interior em relação à hipótese de publicar centenas de poemas de Seymour que o resto da família Glass deseja que vejam a luz. Tudo revolve em torno das questões da privacidade e do amor fraternal, das dúvidas e das hesitações de Buddy, que se debate na tentativa de compreensão das intenções do irmão. (Alguns dos poemas são em forma de haiku, mas nunca os chegamos a conhecer.)
O retrato que emerge das cogitações de Buddy é o de um ser extraordinário, raro e peculiar, um rapaz que entrou para a universidade aos 15 anos e foi brevemente feliz com Muriel (uma mulher demasiado bela mas superficial), um “génio” insone, um pacificador, um poeta e um líder espiritual que inspira e guia a sua extensa família. Mas o que Salinger faz com estas personagens é trazer a lume as questões que o preocuparam ao longo da vida — o peso da genialidade, a solidão do autor, o papel da poesia, a importância da leitura, o eterno conflito entre a luz e o negrume, entre a vida e a morte. No início de Levantai Alto... é-nos revelado um Seymour de 17 anos que lê um conto taoista à sua irmã doente, Franny, então com dez meses, sobre o duque Pu da China, que necessita de alguém que saiba ir procurar cavalos; antes de iniciar o relato do dia do casamento do irmão, Buddy não se esquece de avisar que este se suicidou anos antes, concluindo que, depois dele, “nunca mais conseguiu pensar em alguém que gostasse de mandar à procura de cavalos”. Pensando bem, essa tarefa foi sempre a de Salinger, ao longo da vida.