Angola: carta aberta aos meus amigos do PCP

Nada é suficiente para aceitar qualquer terrorismo de Estado.

Escrevo-vos de cidadão para cidadão, muito para lá retórica da política, na defesa do inalienável direito político da liberdade de expressão. Escrevo-vos também num acto solidário de artista para outro artista, privado dessa mesma liberdade e da sua própria liberdade. Escrevo-vos sem saber se, à hora da publicação desta carta, Luaty Beirão foi libertado ou se morreu, mas, seja o que seja, quero perguntar-vos: porquê, então, o silêncio?

Não se ofendam. Com Apolinário, e como aprendi com o meu avô Amílcar Castro, sei que “a verdade é uma força que ultrapassa a própria dimensão em que combato”. E fico atónito, meus amigos do PCP. É que eu vi passarem por casa dos meus avós maternos muitos e muitos comunistas abnegados na luta pela liberdade na nossa Pátria, ali chegando, às vezes acabados de fugir das prisões da ditadura. Prisões onde também familiares meus estiveram, e um cumpriu pena e outro sofreu torturas. E não consigo entender a vossa ausência na luta pela libertação de um preso de consciência. Porquê, então, o silêncio político?

Nada é suficiente para aceitar qualquer terrorismo de Estado. Todavia, outros factos, num quadro histórico diverso e numa época incomparavelmente diferente da de hoje, não vêm para aqui ao caso e não os vou meter no mesmo saco, nem cabe aqui confundi-los. Escrevo-vos, meus amigos do PCP, por um homem e um símbolo luso-angolano, preso por um regime de matriz fascista no plano interno e de feição neoliberal da globalização da intensificação de miséria dos povos no plano externo. De resto evidente na gula dos seus investidores no nosso Portugal privatizado em saldo por Passos e Portas. Porquê, então o silêncio político vosso?

O caso de Luaty Beirão ocorre num regime bem semelhante às velhas oligarquias e plutocracias da América Latina, como a Cuba contra quem Fidel y los barbudos subiram à Sierra Maestra para descer com o apoio popular e derrubar Baptista. É um regime que assenta num modelo social bem longe daquilo porque se bateram Agostinho Neto, Pinto de Andrade e muitos outros, incluindo Nito Alves e milhares de anónimos angolanos combatendo nas fileiras do MPLA. Aliás, no olhar tranquilo e determinado – quase místico de ascensão à utopia da justiça total – de Guevara morto e no de Luaty Beirão, disposto a levar até ao fim a greve da fome, há muita proximidade. Tal como o olhar hipócrita da filha do Presidente, quando vai em jacto particular a Paris tomar chá ou às compras nos costureiros da Avenue Montaigne, se identifica com o ar hipocritamente cândido de Imelda Marcos a nadar entre milhares de sapatos! Porquê, então, o silêncio político vosso, incompreensível?

Angola está no ranking dos cinco países de maiores desigualdades sociais; 70% da população vive com menos do que o equivalente a cerca de 50 euros por mês (ao câmbio anterior à desvalorização imparável do kwanza); está em 186.º lugar de esperança de vida (menos de 38 anos para os homens, e de 40 para as mulheres), dos países integrantes da ONU (198), segundo fontes da mesma, e abaixo do Uganda, da Eritreia ou da Somália… e de ex-colónias portuguesas, como Timor Lorosae e Guiné, qualquer uma delas com recursos naturais incomparavelmente menores. Angola é um país de saque e violência policial; a falta de saneamento nos musseques eleva brutalmente a taxa de mortalidade infantil por difteria e onde tudo falta: equipamentos médicos, escolas, alimentação, vestuário. Por contraste com o luxo concentrado na pequeníssima elite em torno do Presidente e seu generalato privado. Porquê, então, o silêncio político vosso, incompreensível e contraditório?

O que acontece com Luaty Beirão em Angola, lembra-me o Portugal de Salazar: onde o cantor Zeca Afonso foi preso por escrever canções de protesto social; onde, para lá dos prazos legais no ordenamento jurídico-constitucional do regime soberano, havia as “medidas de segurança” da PIDE, que permitiram que dezenas de antifascistas ficassem eternamente nas masmorras; onde o dirigente comunista Militão Bessa Ribeiro morreu preso em greve da fome. Porquê, então, o silêncio político vosso, incompreensível e inexplicável, inaceitável?

Desculpem, meus amigos do PCP, mas não consigo de todo discernir sequer uma razão lógica ou ideológica que me deixem lugar à mais pequena explicação para este silêncio vosso, incompreensível e inexplicável, inaceitável. Creiam, meus amigos do PCP, que a indignação por tamanho choque é proporcional à tristeza que me invade por ser cometida por um partido de memórias que respeito, meus amigos do PCP. Um regime, cuja prática é antípoda daquela sobre que o próprio MPLA se ergueu. Dos Santos, além do criminoso que é, é um traidor, um cleptocrata abjecto. Porquê, então, o silêncio político vosso em convergência com o dos que o fazem pela susceptibilidade dos mercados e do respeitinho pelos poderosos do mundo?

Porquê, então, o silêncio político vosso de quem, sem ironia, em Portugal se bateu até à morte pela liberdade e se mantém firme entre os que lutam contra a exploração sem limites e a opressão? Porquê?

 

 

Castro Guedes, encenador

castroguedes9@gmail.com

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