E agora… um eufemismo diferente

O eufemismo é uma praga antiga, embora por aí renasça sem freio e numa vaga temível de subgéneros. Com ele misturam-se, em desordem, neologismos inúteis e dispensáveis: as “alavancagens”, as “implementações”, as “customizações” e outras que tais, como muito bem assinalou António Bagão Félix no blogue do PÚBLICO Tudo Menos Economia. Mas o eufemismo tem várias e diferentes faces: tolas, empertigadas, snobes e até assassinas.

No primeiro lote, há um exemplo genial dado por Eça de Queiroz num dos seus textos de As Farpas, que partilhava com Ramalho Ortigão. Conta ele que (o texto foi escrito em Fevereiro de 1872), por ocasião da visita a Portugal do Imperador do Brasil, D. Pedro II, este resolveu visitar Alexandre Herculano. Jornais e cronistas narraram a visita de forma elogiosa e eufórica. Uns disseram que o Imperador “foi à mansão” de Herculano; outros que foi ao retiro, ou ao tugúrio, ou à tebaida, ao aprisco, ao abrigo, ao albergue, ao exílio do historiador português. Houve até quem escrevesse que “Sua Majestade foi à solidão do eminente vulto que…” Comentário final, ácido e feroz, de Eça: “Ora, no meio disto, uma coisa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente a casa do Sr. Alexandre Herculano!”

É verdade, é no que dão os eufemismos. George Orwell, no seu distópico 1984 (escrito em 1949 com um olho nas ditaduras que por aí iam surgindo, nomeadamente o estalinismo), descreve uma sociedade, futura, onde se implantou para sossego do poder (sob vigilância de um Grande Irmão omnipresente e omnipotente) uma linguagem nova, a Novilíngua, em oposição à Velhilíngua. Ora aquela tinha por objectivo substituir a antiga até 2050 (é verdade, ainda não chegámos lá), ano em que a Velhilíngua estaria totalmente abolida. Pois esta “língua nova” não tratava apenas de palavras ou letras, tratava sobretudo de simplificar o pensamento. A palavra “livre” estava proibida, a não ser em contextos inofensivos. Por exemplo: um cão está livre de pulgas, um campo está livre de ervas daninhas. “Quente”, outro exemplo, também não existia. Era “imfrio”. “Mau”, idem. Abolido. Tudo o que antes era mau, era agora “imbom”. Com tais alterações gráficas e semânticas, o pensamento estreitava-se. Palavras como “honra”, “justiça”, “moralidade”, “democracia”, “ciência”, “religião”, eram condensadas numa só: “crimepensar”. Naturalmente por ser crime pensar naquilo tudo. “Campo de trabalhos forçados” era substituído por “campalegre” e Ministério da Guerra era alterado para Ministério da Paz, ou “Minipax”.

Tudo isto faz parte da nossa história e do nosso pensamento, que felizmente não foi abolido. Mas o que dizer dos eufemismos usados nos últimos tempos pelo poder em Angola para lidar com as oposições, nomeadamente com os 15 presos políticos (são 16, mas um foi já condenado e está preso em Cabinda) que insiste em manter nas suas prisões? O primeiro foi usado na detenção de manifestantes. Acusada de os prender, vieram explicar que a polícia angolana apenas os “recolheu”. Coitados, ali nas ruas, desprotegidos, bem precisavam de ser recolhidos… Como é que ninguém se tinha lembrado disso? Mas esta semana o refinamento eufemístico atingiu o auge quando a televisão pública angolana, TPA, se referiu pela primeira vez à greve de fome de Luaty Beirão, cuja libertação tem sido exigida com insistência e à escala internacional. Disse a locutora de serviço, sem usar uma só vez o termo “greve de fome”, que Luaty estaria debilitado porque… passou a ter um comportamento diferente em relação aos alimentos. Extraordinário! O que dirão de um espancado? Que tem um comportamento não-resistente em relação à força física? Ou que foi fisicamente corrigido? E o que diriam de um morto? Que tem um comportamento diferente em relação à vida?

Tamanha hipocrisia tem raízes em tudo o que, na distorção do pensamento, é mais abjecto.

Orwell era inglês, Luaty é angolano, mas liga-os o amor à liberdade. A tal que ainda hoje, assim pudessem certos algozes, só devia ser usada para descrever cães sem pulgas.

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