A legitimidade de um governo de esquerda

Dizer que o PS é mais próximo do PSD do que do PCP ou do BE, esquece os efeitos do afastamento do centro político protagonizado pelo PSD nos últimos anos.

Os resultados eleitorais vieram confirmar o que já se esperava: a maioria dos portugueses rejeitou a coligação PSD/CDS, que perdeu a maioria absoluta com um dos piores resultados de sempre em eleições legislativas. Mas também houve surpresas. Foi o PSD, e não o PS, o partido mais votado. Foi o BE, e não o CDS, o terceiro partido em número de deputados. E, mais importante, com a dispersão de votos por seis forças partidárias passaram a ser necessários pelo menos três partidos para a constituição de uma maioria parlamentar.

A maior das surpresas foi, no entanto, a mudança de atitude dos líderes do PCP e do BE. Antes das eleições, apenas se podia contar com o PS, o PSD e o CDS, os partidos do chamado arco da governação, para a formação de maiorias. Após as eleições, PCP e BE alteraram radicalmente este quadro ao declararem estar disponíveis para, com o PS, formar uma maioria parlamentar e viabilizar um governo de esquerda. Esta mudança alterou a relação de forças entre os partidos e abriu a possibilidade de mais escolhas de governo.

No imediato, é preciso aguardar pelos resultados concretos das negociações em curso. A mais longo prazo, porém, estamos perante uma mudança de fundo no funcionamento do nosso sistema político, e em particular do Parlamento. PCP e BE, por decisão dos seus dirigentes, autolimitavam as possibilidades da sua participação e responsabilização nas escolhas de governo e na governação. Essa não era uma situação normal, nem desejável. No momento em que os líderes partidários declaram a sua disponibilidade para participar plenamente na vida parlamentar, incluindo na constituição de soluções de governo, não tem sentido serem outros a limitar essa participação e a destruir a normalidade agora alcançada.

Esta mudança é positiva porque introduz no Parlamento mais pluralismo e melhor representatividade eleitoral, mais efetiva e consequente. Cerca de 20% de eleitores, do PCP e do BE, passam a poder ver concretizadas, pelo menos em parte, as propostas políticas dos seus partidos. Estes, por sua vez, passam também a poder ser responsabilizados pelas soluções que preconizam, pelos seus êxitos ou insucessos. Mais pluralismo, melhor expressão das vontades dos eleitores e mais responsabilidade dos partidos políticos são princípios que casam bem com a vida democrática apesar de todas as dificuldades que possam eventualmente trazer.

Há, no entanto, quem, revelando um nervosismo desajustado, veja nesta nova situação apenas aspetos negativos e perigos, utilizando para isso argumentos que me parecem muito fracos.

Em primeiro lugar, dizer que falta legitimidade ao PCP para participar numa solução de governo porque 90% dos eleitores votaram noutros partidos, exige lembrar que também 90% dos eleitores não votaram no CDS e que tal não foi, nem é, obviamente, impeditivo da sua participação em coligações de governo. Enfatizar as posições críticas do BE e do PCP sobre a União Europeia e o euro exige recordar que também o CDS foi (e não sabemos se ainda o é) profundamente eurocético e isso não impediu que fizesse parte de soluções governativas comprometidas com o projeto europeu. Como, aliás, acontece um pouco por toda a Europa, onde não faltam partidos eurocéticos em coligações governamentais europeístas.

Em segundo lugar, argumentar que PCP e BE são partidos radicais (de esquerda) requer que se recorde que o Governo que agora cessa funções se deixou capturar por uma agenda ideológica radical (de direita), afastando-se do centro político. De resto, o radicalismo das agendas dos partidos não é o mais importante nesta discussão, porque o programa que acordarem não será o somatório dessas agendas. Importante é saber qual vai ser, se chegar a existir, o programa de governo a que PS, PCP e BE se vão obrigar, e que resultará certamente da identificação dos pontos de convergência prioritários e do maior peso eleitoral do PS.

Em terceiro lugar, dizer que o PS é mais próximo do PSD do que do PCP ou do BE, e que, portanto, seria mais “natural” uma aliança com a Coligação, esquece os efeitos do afastamento do centro político protagonizado pelo PSD nos últimos anos. O PSD que conhecemos no passado já não existe, está transformado num partido de direita, e já não de centro-direita, radicalizado, que não negoceia nem se aproxima das forças partidárias à sua esquerda. Hoje, exceção feita a alguns dos grandes objetivos macroeconómicos, é quase impossível encontrar pontos de convergência nas agendas políticas dos dois partidos em matérias como a educação, a saúde, a ciência, a proteção social, a modernização administrativa ou o investimento público. Não foi o PS que se tornou mais radical nas suas propostas. O PS mantém, para as principais áreas de política e de intervenção do Estado, uma posição de centro-esquerda. Foi antes a coligação PSD/CDS que se radicalizou à direita alienando o apoio de muitos militantes históricos dos dois partidos e afastando-se de tal forma do centro que tornou praticamente inviável qualquer aliança com o PS.

Finalmente, defender que o PS não tem legitimidade para negociar com outras forças partidárias à sua esquerda porque o seu eleitorado não lhe deu esse mandato, exige que se recorde que ninguém tem o dom de adivinhação das intenções dos eleitores. Apenas existe o dever de, com humildade, as interpretar. Mas uma coisa é certa: António Costa afirmou repetidamente na campanha eleitoral que recusava tanto o prosseguimento de políticas de austeridade como a ideia de que haveria partidos do arco da governação e partidos excluídos do exercício de funções de governo. E coligações pós-eleitorais, que se formaram depois das eleições, sem ser previamente sufragadas, aconteceram já, por mais de uma vez, na história recente do nosso Parlamento. Por exemplo, as coligações de governo PSD/CDS lideradas por Durão Barroso e Pedro Passos Coelho.

Ex-ministra da Educação

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