Um governo de esquerdas, uma “revolução” democrática para Portugal

Não sabemos o que ocorrerá com um governo de esquerdas, se se vier a verificar, porque nunca teve lugar… mas sabemos de ciência certa que as soluções do PS com a direita não produzem estabilidade governativa.

No que respeita às legislativas de 4-10-2015, sabemos hoje que a direita (PSD & CDS-PP: PaF) perdeu cerca de 700 mil votos face a 2011, teve 38,3% dos votos e 107 mandatos parlamentares (46,5%), e perdeu seguramente a maioria absoluta para governar a solo (116 lugares ou mais). Pelo contrário, a oposição averbou 61,7% dos votos. Só a oposição de esquerda com deputados eleitos (BE, PAN, PCP/CDU e PS) reuniu 52,16% dos votos e soma 123 lugares. Nestas condições, numa qualquer democracia digna desse nome, se a força política vencedora o for apenas com maioria relativa, terá de conseguir aliados para governar. Caso contrário, poderá ser o segundo partido mais votado a pilotar o governo, se for capaz de liderar uma alternativa no Parlamento, e o vencedor com maioria relativa pode passar à oposição. Esta é uma solução não só plenamente democrática como muitíssimo comum. Todavia, vários jornalistas/comentadores tecnicamente impreparados e/ou ideologicamente enviesados, junto com a direita manipulatória, falam já em golpe de Estado, PREC ou “fraude pós eleitoral”, caso não seja o PaF a liderar o governo. Todos clamam contra uma alegada “ilegitimidade democrática” em caso de uma solução de governo que juntasse o PS com os partidos à sua esquerda. É preciso dizer que tal é totalmente falso: uma tal solução seria não só totalmente congruente com a teoria e a prática democrática na Europa e no mundo, como seria também congruente com a teoria e a prática constitucional em Portugal.

Vejamos alguns exemplos. Em Espanha, onde a maioria governamental (quer ao nível local, regional ou nacional) precisa de apoio maioritário na assembleia para ser empossada, o chamado “voto de investidura”, tivemos um fenómeno idêntico na sequência das eleições regionais de 2015. Assim, os conservadores do PP ganharam as eleições com maioria relativa em Aragão, com 27,5% dos votos, mas governa o PSOE (socialista) com a CHA (Chunta Aragonesista). Nas ilhas baleares, o PP ganhou com 28,5% mas governa o PSOE com o MÉS (Mais Maiorca). O PP ganhou com 37,5% em Castilha-La-Mancha mas governa o PSOE em solução minoritária com apoio parlamentar de outros partidos que não o Partido Popular. Finalmente, o PP ganhou na Comunidade Valenciana com 26,6% mas governa o PSOE com o Compromís (uma coligação de nacionalistas valencianos progressistas e ecologistas). Alguém falou de golpes de estado ou fraudes pós eleitorais? Não, de todo em todo: é apenas e só a democracia a funcionar! É que o mundo democrático não começa e acaba em Portugal, ao contrário do que alguns comentadores impreparados possam pensar… ou do que alguns manipuladores interesseiros gostam de sugerir… E não se pense que é só nas democracias parlamentares com “voto de investidura” que assim é: em 2007, em Timor Leste, um sistema semipresidencial desenhado à imagem do português, a Fretilin (esquerda pós marxista) ganhou as eleições com maioria relativa mas foi o CNRT (liderado por Xanana Gusmão) que governou em aliança com outros partidos, porque ninguém queria “dançar o tango” com a Fretilin Ou seja, estas situações também acontecem em sistemas semipresidenciais, obviamente, e à esquerda, naturalmente. Quanto à plena democraticidade e constitucionalidade de um governo de esquerdas liderado pelo PS, mesmo tendo o PaF ganho as eleições, estamos conversados. Alguns poderão alegar que, todavia, os eleitores não foram advertidos da possibilidade de um governo de esquerdas durante a campanha, mas tal é falso. Costa sempre disse que não aceitava que só PS, PSD e CDS-PP pudessem governar… E, durante a campanha, o BE (e de algum modo também o PCP/CDU) avançou condições inesperadamente pragmáticas para um governo de esquerdas… Portanto, os eleitores sabiam ao que vinham. Mais, se o PS conseguir um acordo estável de governo com BE, PCP/CDU e PAN, por exemplo, e, consequentemente, chumbar o programa de governo do PaF para apresentar ao PR uma solução de governo alternativa, tal será a aplicação prática do conceito de “moção de censura construtiva” que o PS sempre defendeu, sem ser preciso pôr mais o que quer que seja na lei.

Mas se tal situação se vier a verificar, então será uma verdadeira “revolução democrática”. Se é certo que há muitíssimos fatores que dificultam uma união das esquerdas no governo, a verdade é que para haver um tal compromisso aquilo que é verdadeiramente axial é partirmos do princípio demoliberal básico da igualdade política, “uma pessoa, um voto”. Ou seja, é óbvio que tem que haver cedências mútuas e, num estrito respeito da democracia, é óbvio que os partidos maiores terão de ter maior peso no estabelecimento de um programa comum, e os partidos mais pequenos terão de ter menos peso. Ora é precisamente isso a que, pela primeira vez na história democrática do país, quer o BE, quer o PCP/CDU dizem abertamente querer quando afirmam que não pretendem a aplicação integral dos seus programas, sequer maioritária, para apoiarem um governo PS, apenas pretendem obter ganhos significativos para os seus constituintes (programáticos, naturalmente) em sede de um “programa comum”. Mas se, por um lado, nem os votos dos bloquistas ou dos comunistas podem valer mais do que os dos socialistas, situação que verificaria se fossem os partidos minoritários (e não os socialistas) a determinar as linhas de rumo fundamentais de um tal programa de governo, por outro lado, os votos dos comunistas e os dos bloquistas têm que valer o mesmo que o voto de todos os outros grupos sociais e políticos. Ou seja, verificada a condição anterior, nada de axiomático e democrático poderia justificar a exclusão político-governativa de comunistas e bloquistas. Tal é aliás um imperativo de inclusividade democrática. Mais, respeitado que seja o axioma referido atrás na estruturação de um eventual programa comum de esquerdas, então acontecerá uma normalização democrática em Portugal, que ficará assim alinhada com o resto da Europa após o fim da guerra fria: as alianças de partidos de esquerda radical (eurocéticos e/ou críticos dos blocos político militares, NATO, etc.) com os sociais-democratas (e outros) têm ocorrido amiúde na Europa Ocidental (Luke March & André Freire, A Esquerda Radical em Portugal e na Europa, Quid Novi, 2012).

Há ainda uma outra falsidade que não resiste ao escrutínio histórico mais superficial: a ideia, esta semana reiterada pelo líder do “bloco central sindical” (a UGT), de que os governos do PS com a direita, ou da direita com o PS (como agora se perspetiva), produzem maior governabilidade. Não sabemos o que ocorrerá com um governo de esquerdas, se se vier a verificar, porque nunca teve lugar… mas sabemos de ciência certa que as soluções do PS com a direita não produzem estabilidade governativa. Todos os governos que juntaram a esquerda e a direita (PS e CDS-PP, 1977-1978; PS e PSD, 1983-1985; PS e PSD, este como “partido de suporte” no Parlamento, 2009-2011) foram sempre instáveis, ou seja, de curta duração. É fácil perceber porquê: se se juntam num mesmo governo partidos que competem e devem competir pelo controle do governo, logo que haja oportunidade (e sondagens favoráveis...) um deles deitará o governo abaixo para controlar sozinho o executivo.

Finalmente, temos a questão europeia. A Europa é cada vez menos social e cada vez menos democrática, apesar de ser uma promessa fundamental de democratização da globalização e de regulação do capitalismo global (André Freire, org., O Futuro da Representação Política Democrática, Nova Vega, 2015). Uma outra voz de Portugal na UE, europeísta mas assertivamente crítica, é absolutamente necessária. Ora isso não se consegue com as direitas, que exultam com o atual rumo da Europa, exige um governo de esquerdas, que pugne por uma Europa mais democrática e mais social. Neste caso, as “linhas vermelhas” devem ser o europeísmo dos socialistas e a consciência de que, aqui como na Grécia, a esmagadora maioria dos cidadãos não quer nem a saída de Portugal do Euro, nem muito menos a saída da UE. É por isso que, se as esquerdas radicais portuguesas (mas também o PS) quiserem ter um governo de esquerdas e aprender com os erros (nomeadamente do Syriza na Grécia), então devem ser críticos q.b. do statu quo na UE, com vista à sua transformação, mas devem também a todo o custo evitar quaisquer maximalismos que, amiúde, levam a resultados opostos ao esperado…

Politólogo, professor do ISCTE-IUL

E-mail: andre.freire@meo.pt

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