Teoria do consenso

Também a democracia portuguesa se alicerça em alguns consensos de fundo. A adesão do PCP e do BE a tais consensos seria por isso bem-vinda e mostraria compreensão pela escolha da larga maioria dos cidadãos. Isso tornaria possível uma convergência verídica entre o PS e essas forças.

Hannah Arendt, que foi contemporânea de violências indizíveis, não se cansou de sublinhar que a política é o contrário da violência. Convenhamos que as nossas sociedades só não descambam na violência porque se baseiam em consensos de fundo – destes, o contrato social é sem dúvida o consenso nuclear, sem o qual não existiria democracia-liberal, e, logo, pluralismo. Com todas as suas imperfeições congénitas, a democracia é o terreno por excelência do diálogo e da deliberação, os quais pressupõem o respeito pela opinião contrária, o reconhecimento da legitimidade do interlocutor e uma confluência quanto às regras da discussão, as quais, se não implicam uma predisposição para o entendimento, também não renegam aprioristicamente a sua possibilidade.

Qualquer pessoa com um mínimo de sensatez reconhece na moderação a pedra-de-toque do seu quotidiano: se fôssemos constantemente imoderados e impulsivos, a vida em comum tornar-se-ia um inferno, como efectivamente se torna em muitos agregados familiares, locais de trabalho ou estruturas partidárias. A nossa existência é uma negociação permanente com os outros e connosco mesmos, o que comporta não apenas ganhos mas também impasses e cedências. A intuição individual aconselha a valorizar a moderação e a capacidade para negociar consensos como qualidades e não como defeitos. Como é também evidente, não há facilidades na negociação. Pelo contrário, o acto de negociar e consensualizar é sempre um acto de extrema tensão, pleno de rugosidades e atritos. Que o digam os sindicatos e as associações profissionais em sede de concertação social. Negociar, para além disso, leva tempo e reclama estômago, não se compadece com o repentismo ou com a imaturidade.

O consenso não é um fim em si mesmo. Antes pelo contrário, o consenso prevê em si mesmo o dissenso. É precário e é talvez por ser precário que é necessário e útil. O consenso existe porque existem antagonismos. Os antagonismos, sem se consubstanciarem – mesmo que efemeramente – em consensos, teriam um efeito destruidor. Sem moderação não existiria diplomacia e estaríamos condenados a uma sucessão ininterrupta de cisões, incompatibilizações e conflitos de toda a ordem, inclusive militares. A hipótese de um qualquer consenso só se coloca diante de antagonismos. Essa a dialéctica que nos resta: entre consensos e antagonismos.

Ora, a política não é só o domínio do antagonismo e da diferença mas também o domínio da negociação e do consenso. Sucede que, quando confrontados com a necessidade de consensos, a táctica dos exaltados é situar o consenso numa topografia pantanosa, fazê-lo equivaler a uma estagnação, como se qualquer consonância de índole política remetesse de imediato para o “fim da história” e para uma Grande Reconciliação Final em que todos os antagonismos fossem dirimidos e neutralizados, tornando a política irrelevante. Na busca por um motor apto a substituir o mitema da luta de classes, dois pensadores de grande relevância e impacto como são Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, por exemplo, defendem desde os anos oitenta que o horizonte da democracia deve ser um horizonte de antagonismos e que o consenso é inimigo da democracia, podendo mesmo destruí-la (Hegemony and Social Strategy: Towards a Radical Democratic Politics, 3.ª ed., Londres, Verso, 2014). Sustentam, nessa linha, que “qualquer forma de consenso é hegemónica” (op. cit., p. xviii, itálico meu), pelo que o princípio orientador deve ser o da identificação de um “outro” como “elemento externo constitutivo”. Esse adversário, esse inimigo, teria sido para a Europa, até há algumas décadas, o “outro” comunista. Saído este de cena, haveria que selecionar um novo inimigo e é da incapacidade da Europa em consegui-lo que os autores fazem derivar a apatia política contemporânea. A ideia é interessante, mas esbarra na experiência histórica: é mais frequente que seja o extremar dos antagonismos, e não a procura de consensos, a destruir as principais conquistas civilizacionais, da liberdade individual ao Estado-Providência. Note-se, de resto, que no seu estimulante O Regresso do Político (Lisboa, Gradiva, 1996), Chantal Mouffe substitui a recusa do “consenso” pela recusa do “excesso de consenso”, o qual, segundo a autora, trava a dinâmica combativa da democracia (p. 17). Correcção subtil que faz toda a diferença. Resta saber como discernir entre “consenso” e “excesso de consenso”.

O problema é que de tal esquema mental se extraiu a ideia de que, em política, a moderação equivale ao conformismo e que o político moderado mais não é que um quietista, relapso a qualquer sombra de mudança ou transformação: uma espécie de bolor. Assim se tem procurado transformar a virtude da moderação, elemento incontornável da educação cívica ao longo de milénios, num defeito iníquo. Não é pequena façanha. A estratégia, reconheça-se, é hábil. Mas para que tal teoria vingasse seria preciso, desde logo, provar que sociedades moderadas são sociedades estagnadas, onde não se verificam melhorias do bem-estar dos cidadãos e da qualidade democrática. Se concedermos que as sociedades democráticas do pós-guerra são essencialmente sociedades moderadas – por temperamento ou arrependimento, por boa ou má consciência – chegaremos à conclusão de que lucramos incomparavelmente mais com a moderação do que com a conflitualidade. Registe-se que em Portugal até a Revolução de Abril foi, por comparação com outras, moderada. É evidente que o progresso comum acontece sobretudo em períodos de convergência em torno de objectivos consensuais, como seja a instauração e a manutenção de um Estado-Providência.

Também a democracia portuguesa se alicerça em alguns consensos de fundo. Tais consensos foram concertados entre o centro-esquerda e o centro-direita ao longo das últimas décadas em torno de matérias como a integração na UE e na zona euro, a pertença à NATO, uma política externa coerente e, mais recentemente, a necessidade de controlo do défice público. Estes consensos foram revalidados no dia 4 de Outubro por 70% dos portugueses que votaram no PS ou na coligação e recusados por 20%, em números redondos. Àqueles que pretendem deduzir uma maioria de esquerda no Parlamento seguindo um critério puramente aditivo recomendava-se que fizessem também esta adição. A adesão do PCP e do BE a tais consensos seria por isso bem-vinda e mostraria compreensão pela escolha da larga maioria dos cidadãos. Se tal sucedesse, tornar-se-ia possível, em teoria, uma convergência verídica entre o PS e essas forças políticas em torno de matérias de política social, laboral ou fiscal. Nunca é de mais lembrar que no Portugal do PREC o socialismo democrático se afirmou pela identificação de um “elemento externo constitutivo”: o PCP e o seu projecto hegemónico. Quarenta anos depois, o PCP já não tem condições para receitar tal projecto ou para ser esse adversário constitutivo, mas a sua dogmática, salvo retoques cosméticos, pouco evoluiu.

Os deslizes cometidos durante a campanha eleitoral não apagam, de uma penada, o recomendável currículo de António Costa, homem de reconhecido talento negocial e habilidade política. É desta estirpe de qualidades que o PS precisa neste momento crítico para se assumir não como aquilo que alguns socialistas quiseram que ele fosse durante a campanha – um partido contestatário – mas como aquilo que sempre foi: um partido de governo que, com Mário Soares ou com António Guterres, privilegiou o progresso negociado no quadro dos consensos de fundo acima enunciados, quando não com outros partidos, com a sociedade civil.

Escritor, investigador, dirigente do PS-Porto

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