Diz-me uma mentira

Johnny Guitar é um dos pontos altos da grande arte americana que o cinema foi no século XX.

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Um dos títulos mais célebres dos anos 50 americanos, célebre até junto de quem não o viu (porque “toda a gente” conhece a canção-título, originalmente gravada por Peggy Lee), e objecto de muito especial fama em Portugal por qualquer um que esteja familiarizado com a escrita de João Bénard da Costa – de quem o Johnny Guitar era, como ele tantas vezes apregoou, o filme mais amado, o filme de cabeceira. É por Bénard que o filme volta ao circuito comercial, integrado na operação montada em torno da estreia do documentário de Manuel Mozos, João Bénard da Costa – Outros Amarão as Coisas que eu Amei (operação que inclui ainda a edição em DVD deste e de mais sete títulos da predilecção do antigo director da Cinemateca). Sendo este o contexto, não fica mal confessar a dificuldade de escrever sobre Johnny Guitar: é que se, como dizia no Bénard seu texto sobre o filme, “nunca se sabe o Johnny Guitar de cor”, esse texto, sim, sabemo-lo de cor, e o difícil é evitar que as suas palavras e as suas frases nos saltem ao caminho. Mais vale, portanto, tentar ser descritivo.

Johnny Guitar é um daqueles casos de alquimia – e portanto, “magia”, que não é a “magia do cinema” – em que o cinema clássico americano foi fértil, e em particular o cinema dos anos 50, época de perfeita estabilização da indústria e dos seus códigos e, ao mesmo tempo, época em que esses códigos se prestavam a ser corroídos ou exacerbados numa espécie de, fazendo a analogia com a história da arte, idade barroca (e o lado “barroquizante” de Johnny Guitar foi, mais do que uma vez, referido). Tem uma grande estrela, Joan Crawford, mas que já não era, em 1954 (quando tinha 50 anos), a vedeta capaz de por si só arrastar multidões à bilheteira que fora nos anos 20 e nos 30. Quase todo o resto do elenco é constituído por actores que nunca foram estrelas de primeira grandeza no firmamento Hollywood: Sterling Hayden (no entanto, enorme actor) nunca o foi, Scott Brady, vedeta popular dos westerns de série B, também não, e todos os outros, dos fordianos John Carradine e Ward Bond à aqui genialmente zangada e vingativa Mercedes McCambridge, ainda menos (mas claro que nada disto impede, e ainda há por exemplo Ernest Borgnine e o adolescente, tão tipicamente “nickrayeano”, Ben Cooper, que se trate de um ensemble luxuoso e em estado de graça). Também não foi uma grande produção. Foi produzido pela Republic Pictures, um dos mais prolíferos estúdios independentes da época clássica (para o qual John Ford várias vezes filmou) que se especializara em séries B (westerns, sobretudo) feitos normalmente com pouco dinheiro. O argumento, assinado por Philip Yordan mas geralmente tido como escrito por Ben Maddow (que estava na “lista negra” e oficialmente impossibilitado de trabalhar), seria na origem uma parábola a espelhar o ambiente persecutório instalado na América (e particularmente em Hollywood) pela “caça às bruxas” do Senador McCarthy.

Mas se alguns sinais dessa parábola ficaram no filme (a sanha contra Vienna, personagem de Crawford, e Johnny, a cena do linchamento baseado em presunções e preconceitos) nada foi nada por aí, pela alegoria política, que Nicholas Ray puxou (e ele próprio estava longe de ser uma estrela na cena da época, ainda estava para vir o seu filme mais célebre em termos de grande público, o Rebel Without a Cause com James Dean). Antes pelo mais desabrido e delirante romantismo, e a “alquimia” de Johnny Guitar também é isto, o seu lado cinematograficamente “trans-género”: é que se tecnicamente é um western, num cenário de western e com uma narrativa de western, depois é um labirinto, romântico e emocional, que dinamita o género.

Exemplo concreto: aquele – famoso e sublime – diálogo, um dos mais belos alguma vez escritos ou ditos, do “lie to me” entre Vienna e Johnny, tem o ritmo e a violência na dicção, na troca, de um diálogo de film noir (como os diálogos entre Bogart e Gloria Grahame no In Lonely Place que Ray dirigira três anos antes). É de certo modo, aliás, o momento em que o filme abre a porta do romantismo: é tão “cinema” (e portanto, tão “teatro”), com aquela frieza inicial onde o amor (entre os dois) é dado como mera representação para depois se perceber que era ao contrário (e que a representação era amor), que tudo fica, até ao fim, virado do avesso. Nesse célebre texto, Bénard dizia que muitas vezes tinha ouvido a banda de som de Johnny Guitar sem ver o filme; e evidentemente é um filme para ouvir (uma “ópera”, chamou-lhe ele ainda), dos diálogos ao piano de Vienna, passando – claro – pelo som da roleta a girar. E evidentemente para ver: daquelas cores garridas e “falsas” (conseguidas através dum processo de cor low cost) aos espantosos décors do casino e da cascata (onde frequentemente se viu a influência de Frank Lloyd Wright sobre Nick Ray e os seus directores artísticos), passando por toda a tensão narrativa, sempre sobre um barril de pólvora, ou debaixo de uma tempestade eléctrica, feita de explosões e relâmpagos logo sucedidos por momentos de calma e doçura, sempre inquietas, sempre acossados. Sejamos publicitários, para terminar: é um filme sublime, um dos pontos altos dessa grande arte americana que o cinema foi no século XX, e cada vez menos é.

 

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