Coreia do Norte: Hyeonseo Lee fugiu do “melhor país do mundo”

É uma dissidente atípica, Hyeonseo Lee, uma norte-coreana de 37 anos. Saiu do seu país por curiosidade adolescente e já não pôde regressar. Foi imigrante ilegal, refugiada. Viveu anos com uma profunda crise de identidade. “Mas finalmente encontrei-me, a fazer o que faço e como norte-coreana.”

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Hyeonseo Lee: "As pessoas perguntam se aquilo é mesmo assim. É pior" Enric Vives-Rubio

Há uma fotografia no livro A mulher com sete nomes que parece ter sido tirada nos anos de 1930 ou 40. A preto e branco, mostra uma mulher com uma criança de três anos às costas, embrulhada num cobertor de franjas. Foi tirada no estúdio de um fotógrafo por volta de 1984, na Coreia do Norte. Devemos vê-la, antes de começarmos a ler. Ajuda no exercício de visualizar os lugares e as cenas, o ambiente e a sociedade onde Hyeonseo Lee viveu a primeira das suas três vidas.

Era uma vida feliz, conta a autora, que escreveu uma autobiografia que parece um livro de História, um testemunho político que se lê como um romance. Ela chamou “memória” ao texto que publicou para contar como abandonou, sem querer e sem perceber o que estava a fazer, um dos países mais opacos do mundo.

O livro tem por subtítulo História de uma refugiada da Coreia do Norte (ed. Planeta) porque foi isso que começou por ser. “Para sermos um dissidente temos que ter consciência do lugar onde estamos e eu já tinha começado a perceber algumas coisas, mas tinha vivido toda a minha vida a pensar que vivia no melhor país do mundo. Pensávamos que éramos os melhores do mundo, os mais felizes dos seres humanos. Eu nem sequer sabia que vivia numa ditadura. Quando se vive como na Coreia do Norte, fechados, não sabemos a situação em que estamos”, disse Lee na entrevista que deu ao PÚBLICO em Lisboa, onde veio divulgar o livro e fazer o seu trabalho de activista que explica/denuncia a Coreia do Norte. "A imagem que nos davam é que fora da Coreia do Norte todos eram mendigos, nem tinham sapatos”.

Em 1997, quando aos 17 anos atravessou o rio Yalu junto à sua cidade de Hyesan e entrou no território chinês, moveu-a a curiosidade, não a crítica, a rejeição. Queria passear no outro lado, que nas imagens da televisão chinesa que via às escondidas em casa lhe parecia vibrante e diferente do que lhe tinham ensinado na escola. Tinha nos planos regressar, uns dias depois, mas não pôde ser. “O que aprendi sobre a China na televisão não tinha nada a ver com o que contavam. A China parecia melhor, e eu comecei, ingenuamente, a pensar passar a fronteira, sem saber que ia mudar a minha vida”.

Começou por ser uma desertora, diz, a consciência de dissidente e de activista contra o regime de Pyongyang formou-a depois, quando percebeu o logro. “Na Coreia do Norte, a doutrinação começa logo no primeiro dia” de escola, diz no livro. Pelo que conta, começa no primeiro dia de vida.

Paninhos para limpar os Kim
"Toda a vida familiar, desde comer, socializar e dormir, se desenrolava sob as fotografias [do Grande Líder Kim Il-sung e do Querido Líder Kim Jong-il]. Cuidar das fotografias era o principal dever de cada família. (...) Desde tenra idade que comecei a ajudar a minha mãe a limpá-las. Usávamos um pano especial, fornecido pelo Governo, que não podia ser utilizado para limpar qualquer outra coisa. (...) Mais ou menos uma vez por mês, uma equipa de funcionários que calçava luvas brancas entrava em todas as casas do bloco para inspeccionar os retratos. Se no seu relatório constassem que uma família não os tinha limpo como devia ser, a família corria o risco de ser presa”.

O livro de Lee, retalhado em múltiplos capítulos, divide-se em três grandes partes — nascer e crescer na Coreia do Norte, a vida de uma imigrante ilegal na China, o percurso até à actual condição de refugiada na Coreia do Sul; três vidas, portanto. A primeira parte é a mais suculenta, porque relatos em primeira mão sobre a vida quotidiana no Norte são raros. Testemunhos de dissidentes não são inéditos — perseguições, prisões, torturas —, mas Lee abre a porta de um país que estamos habituados a olhar como estranho e de onde, volta e meia, surgem histórias que parecem irreais, como os paninhos de limpar o pó aos retratos dos Kim.

“As pessoas perguntam se aquilo é mesmo assim. É pior. Mas as pessoas, os norte-coreanos, não sabem o que se passa porque não conhecem o conceito de opressão”.

“Há coisas que não podemos saber se são verdade. Mas temos, por exemplo, a certeza de que Kim Jong-un [o actual líder] mandou matar o tio e outras pessoas do seu círculo mais próximo”, diz a autora, que considera este Kim, o terceiro da História da Coreia do Norte, o mais descontrolado e errático. “O avô dele era um ditador terrível”, diz do fundador do regime. Kim Jong-il, o filho deste e pai do actual líder, foi um desastre para o povo e para o país, considera.

Quando Hyeonseo Lee saiu da Coreia do Norte, estava Kim Jong-il no poder. O filho, Kim Jong-un, sucedeu-lhe quando morreu, em 2011. Por uns instantes, os norte-coreanos que vivem fora do seu país esperaram do novo Kim, que estudou no estrangeiro e podia ser um homem moderno, outra espécie de governação. Hyeonseo Lee diz que o percurso que o líder está a fazer — “está a matar toda a gente que lhe desagrada ou que procura alguma mudança, os generais” — pode custar-lhe caro. Talvez a vida. Acredita que Kim Jong-un é incapaz de mudar, de reformar, de melhorar a vida dos norte-coreanos, e que o regime não resistirá muitos mais anos — este será o último dos Kim, acredita, e com ele desaparecerá um país chamado Coreia do Norte. “Acredito na reunificação e acredito que os que fugiram, como eu, terão um papel importante na reconstrução do país. Quero voltar. Ali é o meu lugar”.

No livro, Lee explica como a idolatria à família Kim é construída para alimentar a ideia de que tudo o que os norte-coreanos são se deve à dinastia e que sem ela o povo perde o propósito de existir. São deuses, criaturas sobrenaturais e perfeitas, e devem ser venerados como eles: “A história do nascimento do Querido Líder Kim Jong-il provocava-me arrepios na pele. O seu advento foi anunciado por sinais miraculosos que surgiram nos céus — um duplo arco-íris sobre o monte Paektu, andorinhas que entoavam cânticos de louvor com voz humana”.

Na escola secundária, tinha aulas de matemática, coreano, arte, ética comunista, russo, geografia, física e química. Mas “os temas mais aprofundados centravam-se nas vidas e pensamentos do Grande Líder e do Querido Líder”, e nem um pormenor era deixado ao acaso na estratégia de formatação ideológica. Problema de matemática num livro da escola de Lee: “Numa batalha da Grande Guerra da Libertação da Pátria, três corajosos soldados do Exército do Povo Coreano mataram trinta canalhas imperialistas americanos. Qual foi a proporção de soldados em combate?”. Os americanos, ensinaram-lhe durante 17 anos, eram feios e cheiravam mal.

"Estamos muito magros"
Lee não esconde que percebeu muito tarde que era uma rapariga privilegiada na Coreia do Norte. Nasceu numa família com estatuto especial que tinha direito a carne e peixe às refeições e confessa que se ofendeu quando foi a casa de uma amiga e não lhe ofereceram nada para comer — ela que, quando ia a casa de Lee, se empanturrava de iguarias.

Por entre a “normalidade”, surgiam os “episódios”. Assistiu à sua primeira execução — um enforcamento público — aos sete anos, foi ensinada a não falar de nada a não ser de trivialidades, viu vizinhos denunciarem vizinhos, colegas espiarem colegas, famílias inteiras a desaparecerem, levadas pela polícia política, a Bowibu.

Veneravam-se os Kim, os “olhos na parede” — “Obrigada pela nossa comida, Respeitável Pai e Líder Kim Il-sung”, dizia antes de pegar nos pauzinhos —, mas “não havia lealdade, havia medo”, diz na entrevista Hyeonseo Lee, que também descreve os anos da grande fome da década de 1990.

Não fala de estatísticas, de razões para a falta de alimentos, das mudanças no mundo e nas estratégias políticas de Pyongyang. Coerente com o resto do livro, o capítulo da grande fome é um conjunto de histórias “banais”.

“Comecei a ver gente a morrer na rua. Foi um choque.” Viu gente caída de fome, corpos esqueléticos a boiar no rio, colegas de escola que desapareceram — quando os pais deixaram de ter comida, as crianças deixaram de ir à escola — e leu a carta que a tia escreveu a anunciar que já estava morta. “Quando leres isto, nenhum de nós os cinco será já deste mundo. Estamos muito magros, ainda que recentemente os nossos corpos tenham começado a inchar. Estamos à espera da morte. O meu único desejo antes de morrer é comer um bocadinho de bolo de milho”.

“No ano de 1996 [tinha 16 anos], a cultura do nosso país mudou de forma notória”, relata no livro. “À medida que a fome alastrava, começaram a surgir por toda a província rumores de canibalismo. Na ocasião pensei que se deveria tratar de psicopatas, porque as pessoas nunca seriam capazes de recorrer a isso. Agora, já não tenho tanta certeza. Depois de ter falado com muita gente que nesse tempo esteve às portas da morte, percebi que a fome pode levar as pessoas à loucura”.

“Levei algum tempo a perceber” o que se passava, confessa no livro. “Recordei-me como tinha sido desabrida com a minha amiga Sun-i por não me ter oferecido nada para comer em sua casa. Senti-me envergonhada”.

Sair das trevas
Na China, Lee conheceu outras pessoas como ela, imigrantes ilegais, envergonhados por serem norte-coreanos, maltratados por serem norte-coreanos, com medo de serem apanhados e deportados. Pensou no suicídio. Decidiu partir, escolheu a Coreia do Sul. “Por que razão queres ir para o país dos nossos inimigos?”, perguntou-lhe a mãe.

Chegou à Tailândia de avião, daí partiu para Seul:

— Sou da Coreia do Norte. Procuro asilo político.

— Bem-vinda à Coreia.

Parecia fácil. Não foi. Antes de ser oficialmente uma refugiada, houve um tempo de prisão, de desconfiança, de espera, houve os interrogatórios para apanhar espiões mandados por Pyongyang, a inadaptação (a mãe e o irmão, que conseguiu fazer sair do Norte, chegaram a querer voltar, incapazes de se ajustar a uma cultura tão diferente num país onde o norte-coreano é olhado “de cima para baixo").

Hyeonseo Lee significa “brilho do Sol” ou “boa sorte” e foi ela que o escolheu quando saiu das trevas. É apenas o mais recente dos sete nomes que teve desde que nasceu. “Sim, vivi uma grande crise de identidade até recentemente, até há três anos”, diz a autora e activista anti-regime de Pyongyang em Lisboa. Mas finalmente encontrei-me. Encontrei-me a fazer o que faço e encontrei-me como norte-coreana”.

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