Da Misericórdia a Marte, uma crónica eleitoral

1. Moro num bairro em que sei o nome do carteiro (José), acabo de me cruzar com ele, deu-me o que não caberia na ranhura da porta. Também sei o nome do senhor da mercearia (João) que se lembra do requeijão que eu queria, ou da menina da tasca (Rosa), que me trata por menina.

Dobrando a esquina quase esbarrei num mano, calça de fato de treino, hip hop no telemóvel em alta-voz. O vidrão estava como quase sempre atulhado de garrafas, e ainda vamos a meio da semana, lá para sexta estarei a acordar às quatro da manhã com as noites brancas, que se anunciam com urros e quebrar de garrafas. Às quatro da tarde, do lado que no meu prédio dá para os quintais, os galos e os pássaros rivalizam com as serras e britadeiras do hotel de cinco estrelas que já estava em construção quando me mudei para cá há oito meses, e está longe de acabar. Entretanto, na parte da frente do prédio são só mesmo as serras e britadeiras do quiçá-hotel, talvez serviced apartments, que também já estava em construção quando cheguei. O meu bairro caracteriza-se por ser difícil saber se o mau (frenesim de hotéis, apartamentos, restaurantes e bares a serem construídos) não será substituído pelo pior (as enchentes que vão justificar esse frenesim), e nisso é muito parecido com os 5.380.246 portugueses que votaram nas eleições legislativas do último domingo, também com dificuldade em distinguir o mau do pior. O canalizador que há meses me instalou o chuveiro disse que eu tinha tido muita sorte em conseguir alugar um apartamento nesta rua porque todos os moradores estão a alugar a turistas, e isto não é Alfama nem o Bairro Alto, nem o Príncipe Real, nem a Praça das Flores, muito menos o Chiado. Moro num bairro em que há travessas íngremes com portas da rua mais baixas do que eu, e quando se abrem é logo para a casa toda, mesa-televisão-sofá-cama. Para não escorregarem na calçada, alguns moradores das travessas íngremes põem pedaços de alcatifa gasta em frente à porta, além da roupa estendida ao nível do chão, porque é o que têm. Às vezes a porta abre-se, aparece uma mulher de bata e lá vem água sem água-vai, e às vezes essas mulheres também falam mandarim ou bengali, e às vezes moram no fundo da loja. O costureiro que remendou a minha saia era de Lahore, trocámos ideias sobre o assunto, Lahore, não a saia. Além das hordas das noites brancas, também adormeço e acordo com os 129.745 franceses que este ano descobriram Lisboa. Ouço-os nas noites mais quietas, aquele sotaque a bater nos becos, nas escadinhas, bon, con, mec, chouette. Moro assim num bairro cosmopolita, com azulejos de naus, e canários nas varandas, e ex-agarrados que passam o dia num degrau, e reformados que passam o dia à janela do rés-do-chão, colados a uma coluna que toca Miley Cyrus quando vamos a passar, a caminho sabe-se lá do quê, e nisso estamos todos juntos, o bairro, o país, o planeta.

2. A freguesia deste bairro é a Misericórdia (junção das antigas Mercês, Santa Catarina, Encarnação e São Paulo). Fui ver como seria o país da Misericórdia depois das eleições legislativas do último domingo, se o país fosse a Misericórdia. A primeira revelação é que a Misericórdia parece saber o que é hoje o PS, pelo menos um por cento melhor do que os portugueses. O PS é aquela capa debaixo da qual, neste momento, tanto pode sair o Zorro como Zapata mas sobretudo sai o Aparelho? Aquele polvo que, dependendo do braço, será PSD, Bloco de Esquerda, PCP, Livre, CDS-PP? Pois mesmo assim, e ainda que por uma unha negra, a Misericórdia faz dele o mais votado. A segunda revelação é que Rui Tavares pode pensar em disputar a Presidência da República com base na Misericórdia: o Livre/Tempo de Avançar obteve aqui o seu recorde histórico, 3,8 por cento, ou seja, mais de cinco vezes mais do que o resultado nacional. A bem da verdade, deveria ser aliás uma coligação Misericórdia + Santo António, dado que o Livre teve igualmente 3,8 em Santo António (antigas freguesias Coração de Jesus, São Mamede e São José). É praticamente o partido dos santos. De resto, a Misericórdia revela-se um espelho do país no que toca a Bloco e CDU, e o PAN pode contar com os cães da vizinhança, mais os felinos do quintal, para eleger aqui o dobro dos deputados.

3. A seguir fui ver que país seria a última freguesia onde morei e de facto voto. Agrupa nada menos do que Mártires, Sacramento, São Nicolau, Madalena, Santa Justa, Sé, Santiago, São Cristóvão & São Lourenço, Castelo, Socorro, São Miguel e Santo Estêvão. Um aglomerado bíblico que ganhou o apropriado nome de Santa Maria Maior. Pois aqui o enigma da identidade do PS parece ainda mais bem resolvido, com 39,2 por cento dos votos, mas sobretudo a esquerda somada (tomando esquerda como tudo o que está à esquerda do PaF, e na hipótese remota como Marte de ser possível uni-la) tem mais de 60 por cento, com Bloco na média nacional, CDU bem acima, Livre muito acima e PCTP acima de 1 por cento. Aliás, vale o que vale, mas o desconhecido com quem troquei ideias antes de alcançar a urna tinha votado Passos em 2011, porque ia na sua segunda cura de droga, e agora ia votar Garcia Pereira.

4. O meu trio pessoal de freguesias lisboetas fecha com o apuramento do voto noutra Santa Maria, mas dos Olivais, onde cresci. Mais ou menos o cenário do ponto anterior, PS a rondar os 40 por cento, com uma pitada menos de CDU e queda do Livre para metade, 1,4.

5. Nesta amostra de bairros históricos e recentes em que se misturam várias classes urbanas, desde o palácio na Misericórdia à habitação social dos Olivais, o partido mais estável é o Bloco, que nas três freguesias varia apenas uma décima, entre 10,2 e 10,3, a média nacional. Graças às suas deputadas, o Bloco, tão dado como morto, sai destas eleições como a mais sólida base do que poderia ser uma governação à esquerda. Claro que quando se fala em governação aparece sempre o arco para com ela formar o célebre arco-da-governação, e é aí que em geral começam as cambalhotas nos Aparelhos. Mas o que também sai destas eleições é que nunca desde 1985 caiu tão baixo o arco-da-governação PS-PSD.

6. A cores e em geral, o país é rosa a sul do Tejo, laranja a norte. Depois, por concelhos, há os enclaves da CDU em Serpa e no Alto Alentejo (Montemor, Arraiolos, Mora, Avis); os enclaves rosa no Norte (Paredes de Coura, Vizela, Baião, Santa Maria de Penaguião) ou em Coimbra, na Nazaré, na Marinha Grande, em Castelo Branco, Idanha, Fundão, Covilhã; tal como o enclave laranja de Loulé, Albufeira, São Brás de Alportel num Algarve que foi ficando rosa. Mas que dizer do São Jorge, das Flores? Duas pequenas ilhas no meio do Atlântico divididas exactamente ao meio, metade laranja, metade rosa.

7. Entretanto, espero não conhecer pessoalmente nenhum dos 27.136 apoiantes do PNR, e das suas acções de sensibilização contra a invasão islâmica, porque o meu voto é que se desintegrem na própria chama (aquilo é suposto ser o símbolo da pátria ou do gás butano?).

8. Em relação aos 4.059.465 portugueses que estavam inscritos e não votaram, batendo um novo recorde de abstenção em eleições legislativas, impossível saber quantos estariam incapacitados, recém-emigrados ou ausentes, quantos serão anarquistas ou têm outra convicção. Porém, para aqueles que não perderam uma hora a pensar no assunto, não há apelo nem agravo, é assim cada vez mais: mais isolados ou perdidos, mais cercados ou sozinhos, ou tudo isto, porque nada disto se exclui, nem exclui ninguém. Votar é um direito, e pode ser uma emoção, emocionei-me atrás daquele biombo onde pus uma cruzinha num papel, mas fiz isso porque acredito. Não vivo bem nem mal, só bem demais para apontar quem não acredita. Ainda querer estar aqui, no mesmo planeta do carteiro ou da tasca, é uma sorte. De qualquer forma, segundo as últimas notícias, parece que em Marte não há correio, nem filetes com açorda.

Foto
RAFAEL MARCHANTE/reuters
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