Os quadros estão na rua

Há quadros — com molduras e tudo — nas ruas de Lisboa. São reproduções de obras do Museu de Arte Antiga. E alguma coisa acontece em nós quando nos cruzamos com eles

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A primeira vez que vi um fui apanhada de surpresa. O efeito foi exactamente aquele que imagino que se pretenda. Passava pela Rua do Loreto e vi o quadro na parede exterior de um edifício. Agora, quando penso nesse momento, tenho a sensação de que o meu cérebro demorou uma fracção de segundo a conseguir transmitir a informação correcta: está um quadro de museu, com moldura e tudo, pendurado na rua.

Devo ter dado um passo atrás e parei para observar melhor. Dei uma olhadela rápida à minha volta para perceber se havia outras pessoas a olhar ou se tinha sido apanhada nalguma piada. Mas não, o movimento continuava normal. Descansada, dispus-me a observar o quadro mais atentamente. Li a legenda ao lado. Reparei nas personagens, na cena. Voltei a olhar à minha volta para confirmar que estava a ter um comportamento adequado. Tudo calmo.

Havia um quadro de museu na rua. E, no meio da estranheza da situação, a maior estranheza continuava a ser a moldura. Como se esta fosse o elemento que fazia toda a diferença. Claro que existe street art e que temos peças originais nas ruas e que estamos habituados a isso, mas uma moldura é um elemento bastante mais estranho. Era ela que nos dizia “não sou um cartaz, sou um quadro a sério e decidi sair do museu, onde vocês nunca me iam visitar, para vir mostrar-me aqui na rua”. Há alguma coisa de comovente na súbita humildade da pintura à minha frente. Como se fosse ela a estender-nos a mão e a dizer que afinal somos importantes (ela pertence a todos, a verdade é essa) e que não faz sentido haver distância entre nós.

É curioso perceber como a simples deslocação no espaço de uma obra de arte — como o Museu Nacional de Arte Antiga faz nesta iniciativa, que baptizou como ComingOut e que traz 31 reproduções de obras da sua colecção para as ruas de Lisboa (Chiado, Bairro Alto, Príncipe Real) durante três meses — lhe dá outros sentidos e pode alterar a nossa relação com ela.

O museu, todos sabemos, empresta uma solenidade às coisas. Mesmo que já tenham sido inventadas muitas maneiras de o dessacralizar, nada altera o facto de estarmos entre aquelas paredes por vontade própria. E há uma intimidade diferente entre nós e um quadro. Muitas vezes estamos sozinhos e com todo o tempo para o observar. Há tempo e silêncio — precisamente o que não existe na rua.

Desde que me cruzei com o quadro que não me sai da cabeça a cena de Vertigo em que James Stewart segue Kim Novak até ao museu e a observa naquele que é (ou ele pensa ser) um momento de profunda intimidade entre aquela mulher misteriosa e o igualmente enigmático Portrait of Carlotta. Seria possível um momento assim se o quadro estivesse na rua, se não existissem as paredes do museu? O pudor que leva a personagem de James Stewart a afastar-se existiria?

Outras vezes — se estivermos a tentar ver a Mona Lisa, por exemplo — não há nem silêncio nem intimidade, há, antes, uma sensação de urgência porque atrás de nós estão muitas outras pessoas a querer ver — e fotografar — o mesmo quadro.

Não vale a pena entrar aqui pela questão da reprodução. Claro que os quadros na rua são reproduções (e mesmo assim já houve um roubo), e claro que uma coisa é ver uma reprodução (que se pode ver também na Internet ou num livro) e outra é ver um original. Mas muito provavelmente eu nunca me lembraria de procurar na Internet a obra Conversação (1663-1665), de Pieter de Hooch — essa mesma que me fez parar naquele dia na Rua do Loreto.

São seis as personagens, são muitos os detalhes, do espaço mas também dos gestos, dos olhares. Há muito a tentar perceber aqui: quem são estas pessoas, porque estão reunidas nesta sala, de que falarão, que expressão terá o homem cuja cara está tapada pelo próprio braço e porque é que uma rapariga o olha com um ar iluminado, quem é o homem que entra e ao qual apenas o cão parece prestar atenção, que quadros estão representados dentro deste quadro? Acabo na Internet, claro, no site do MNAA, onde leio que nesta “ obra de referência da colecção de pintura holandesa do Museu, e uma das mais representativas deste contemporâneo de Vermeer, o significado da composição supera a mera representação de uma cena galante do quotidiano de Amesterdão pelos meados do século XVII [e que] as diversas personagens à volta da mesa poderão aludir ao conceito dos Cinco Sentidos”.

Posso, no meio de tudo isto, ainda não ter visto o original, mas aquela moldura na rua fez-me parar e pensar. E nos tempos que correm (literalmente), isso parece-me já extraordinário.

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