Uma companhia de demolição chamada Girl Band

Volta e meia surge uma banda assim: que não inventa nada de novo mas volta a fazer-nos crer na pura energia negativa do rock’n’roll. Por estes dias, essa banda passa no Festival Mucho Flow, em Guimarães, e na ZDB, em Lisboa.

Uma companhia de demolição chamada Girl Band

A culpa de tudo isto é do agente. Por “isto” entenda-se não a crise, nem os migrantes, nem primeiros-ministros que apreciam colocar partes baixas na boca de porcos mortos, ou uma imprensa que se compraz em falar de tão pouco higiénicos temas, mas antes algo mais trivial, como o simples facto de um pobre moço de província estar a falar com um membro dos Girl Band ao telefone.

“Ele é fantástico”, diz Daniel Fox, o baixista. “Entrou a bordo mal fizemos o nosso primeiro EP e de repente passámos de quase não tocar para uma situação em que tínhamos muitos concertos e uma data de gente a falar sobre nós.”

Ou pelo menos é isso que parece que ele diz, porque o raio do sotaque irlandês de Daniel é vagamente incompreensível. Seja como for, é um acto admirável de Fox, admitir que se estamos ao telefone, se anda meio mundo a falar dos Girl Band, tal se deve ao agente – a maior parte dos músicos invocaria o karma, uma energia cósmica, o destino, o passador de droga, mas nunca admitiria qualquer relação entre a sua música e uma simples transacção comercial que envolve vender discos e fazer publicidade para o conseguir.

“A palavra espalhou-se. E os concertos devem ter ajudado”. Devem, sim: se há coisa de que os Girl Band têm fama é de serem bons ao vivo. Não admira – basta ouvir, por exemplo, Paul, o primeiro single de Holding Hands With Jamie, com as baquetas a tonitruarem com uma força de dar cabo da pele encardida de um bácoro, aquelas guitarras povoadas por um ruído capaz de esgotar um par de barragens em capacidade máxima, para se perceber que isto ao vivo há-de ser qualquer coisa – sendo que poderemos tirar teimas acerca desta assunção no sábado, 10, dia em que os Girl Band encabeçam o cartaz do Festival Mucho Flow, e no domingo, 11, na Zé dos Bois, em Lisboa.

Holding Hands With Jamie – um álbum que faz uma sarjeta parecer limpinha e a boca de um porquito morto um sítio agradável para pousar zonas delicadas do corpo – é o primeiro disco a sério dos Girl Band, nascidos do encontro de Daniel com Dara Kiley, o vocalista que passa a vida a violentar as suas cordas vocais com a berraria que produz. Os dois tocam juntos há muito tempo em Dublin – se é que se pode falar em muito tempo quando se é tão miúdo. Neste disco, o quarteto (ao núcleo duro juntaram-se Adam Faulkner e Alan Duggan) soa a uma versão menos janada e mais polida de uns Birthday Party que por acaso até tomam banho – isto apesar de exsudarem violentas doses de testosterona, em particular o rapaz da bateria, o que espanca pele com uma fúria psicótica.

Mas os Girl Band não estão muito interessados em reflectir sobre a música que fazem. Segundo Daniel, a única ambição estética que têm é não soar como as bandas que tinham na adolescência. Porquê? “Porque eram péssimas. Nessa altura estávamos muitos interessados em coisas como os Sonic Youth. É claro que queremos fazer barulho. Só não estamos é a tentar ser apenas barulhentos. Temos apreço pela melodia. Mesmo que soterrada num mar de ruído.”

Momento para Daniel dizer a tradicional frase que os homens do rock acabados de sair da adolescência dizem sempre: “Serás sempre influenciado pelo rock que veio antes. Mesmo os bluesmen do inicio estavam a roubar os bluesmen dos anos 50. Por isso nem discuto o rock. Cada vez que alguém pega numa guitarra vai haver coisas novas. De alguma maneira, se houver talento, vai soar fresco.”

Talvez não seja uma questão de soar fresco ou não, talvez neste pequeno microcosmos (uma guitarra, um baixo, uma bateria, voz), as coisas soem apetecíveis enquanto debitarem energia com o estardalhaço de uma britadeira ensandecida.

Diversão
Antes de Holding Hands With Jamie houve um par de EP, um dos quais saído este ano para compilar os singles dos rapazes. Daniel confessa, com aquela honestidade dos debutantes, que se fizeram um longa-duração foi apenas porque nunca antes tinham sentido que tinham “material decente para um disco inteiro”: “Não nos sentámos para escrever o disco. Tínhamos simplesmente nove temas que não tínhamos editado e foi isso que pusemos no disco. Mas adorávamos todas as canções. A única coisa que decidimos em termos de escrita foi que íamos compor como se estivéssemos a tocar ao vivo, o mais simples possível. Nós não escrevemos muito – e só acabamos uma canção quando gostamos dela.” (Daniel, a sério, além de um agente arranja um RP.)

Ora, como sabemos, os músicos rock não se esforçam – tudo o que compõem saiu assim. Não os Girl Band, segundo Daniel: “Apesar de as nossas músicas serem muito catárticas, nós não nos limitamos a chegar e fazer barulho. Não é só ‘vamos enlouquecer e ver o que acontece’. É preciso muito trabalho, melhorar, ver o que funciona e o que não funciona. A diversão está toda aí. Às vezes há canções que surgem quase do nada, admito. E há coisas que saem naturalmente. Mas a maior parte das vezes estão quase lá e é preciso saber do que a canção necessita – e isso dá trabalho.”

Foto

Punk-rockers que acreditam no trabalho – onde é que o mundo vai parar? “Tivemos muita sorte”, continua o baixista, que não pode estar sempre a fazer figura de punk inteligente e volta e meia também tem o direito de atirar uns clichés cá para fora. Como este: “Quando começas a tocar não tens a mínima ideia do que podes fazer – acreditas que tens talento, que podes fazer boas canções, mas isto excedeu por completo as nossas melhores expectativas. Vou ser sincero: mesmo se não tivéssemos a banda estaríamos a fazer música na mesma, a ter empregos de merda só para fazer canções. Porque isto é demasiado divertido para não o fazermos.”

Quando o punk começou era acerca de No fun. Hoje é o oposto – mesmo uma banda que podia muito bem ser uma companhia de demolição, como os Girl Band, quer divertir-se. De certo modo o punk tornou-se burguês; ou normal; ou não-suicida. E não há nada de errado nisso.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários