Sem surpresa

Portugal aguenta o inaguentável, disse um banqueiro filósofo. Talvez tenha razão.

A Constituição desta I, II ou III República em que vivemos nunca me inspirou grande confiança. Foi e continua a ser, na sua fase final, uma Constituição doutrinária, obcecada por perigos imaginários (que vieram da nossa história e, como sempre, da ignorância da história francesa).

Ainda por cima é um produto de juristas, que se aplicaram a diminuir e anular a influência do povo e a servir os partidos. No meio disto tudo, a acção de deputado individual acabou por se perder. Os maiores políticos do século XX (digamos, Churchill e Gambeta) não podiam ter chegado onde chegaram com a Constituição sob que vivemos, com ou sem as revisões, que emendaram as disformidades mais gritantes. De resto, quando a caranguejola se começar a partir, cai aos bocados.

As circunstâncias de hoje não animam o cidadão comum letrado ou semiletrado. Para começar, ele sabe que o indígena não se distingue pelo civismo. A ressaca do pronunciamento de 1974 – dos saneamentos “selvagens” por assembleias de acaso à nacionalização da banca, e da conversão universal aos poderes do dia, mesmo quando eram do Partido Comunista, à ascensão miraculosa dos srs. ministros dos nobilíssimos governos da Ditadura a ministros da liberdade – criou uma pasta indistinta em que se afundou muito a dignidade política. E, a seguir, o predomínio do “arco” CDS, PS, PSD transformou os políticos numa melancólica raça de lacaios, como os lacaios dados à intriga e à venalidade. Basta abrir a televisão para constatar que ninguém acredita neles. Pior, que a generalidade do público tem nojo deles.

Consta que neste momento corremos colectivamente um perigo maior. Não consigo imaginar se há alguma consolação em pensar que em pouco tempo – 40 anos – fomos governados por Vasco Gonçalves, Pinheiro de Azevedo, Maria de Lourdes Pintasilgo, Francisco Balsemão, Cavaco Silva e José Sócrates. Mas consigo imaginar que as barbaridades que ultimamente se disseram, exibindo um desprezo total pelo equilíbrio do Estado e da sociedade, deixaram os meus queridos compatriotas na calma podre e a vista curta com que invariavelmente enfrentaram as grandes dificuldades. Portugal aguenta o inaguentável, disse um banqueiro filósofo. Talvez tenha razão e o país se deixe resvalar pelo inominável, enquanto sofre pelo seu clube e leva a sério a “arte” da “lúmpen” inteligência. Não seria um destino surpreendente.

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