Não-apelo ao voto

1. No Génesis, esse incrível livro de aventuras, há aquele momento em que Deus, zangado com a maldade dos homens, decide acabar com eles, e de caminho com toda a Terra. Não se sabe o que os demais seres terão feito, mas Deus é um radical, a teoria é essa, arrasar tudo. Também não se sabe como nem porquê, mas entre os homens sobra um justo e perfeito, que anda sempre com Deus, portanto Deus entrega-lhe o reset da Terra. Noé constrói a Arca para o Dilúvio com um par de cada espécie e, ao fim de 40 dias, a ver se as águas já desceram, solta um corvo, depois uma pomba. As minhas desculpas a quem conhece a aventura, é que vou citar o corvo da Arca adiante e acredito no Estado laico, pode haver quem não o conheça. Na verdade, e atalhando, estou a contá-la porque ainda acredito no Estado.

2. Como ainda acredito no Estado, este domingo vou votar para eleger um Parlamento, de onde sairá o Governo de Portugal. Entrei nos sites da Comissão Nacional de Eleições e do Portal do Eleitor, enviei um sms para o 3838 e finalmente confirmei o local do voto com a nova Junta de Freguesia que agregou 12 das antigas, porque há meses tive de fazer um segundo passaporte, e para isso tive de fazer um cartão do cidadão, e para isso tive de actualizar a residência. A minha parte favorita do Estado não é a burocracia, que sempre me faz equacionar a passagem à clandestinidade, mas claro que há pior, como esperar seis meses por uma colonoscopia ou levar com uma carga policial.

3. Em 2012, quando as ruas portuguesas se encheram de protestos, eu morava no Rio de Janeiro. Nesse ano, aconteceram mais de três mil manifestações em Portugal com presença da polícia, desde a coordenação do trânsito à bastonada. Vi pelo computador, a mais de sete mil quilómetros, as imagens da carga frente à Assembleia da República a 14 de Novembro de 2012. Lembro-me disso sempre que vejo a Assembleia, que agora é minha vizinha, e já morava aqui quando, esta Primavera, ou seja dois anos e meio depois, houve notícias da Inspecção-Geral da Administração Interna quanto ao comportamento da polícia nessa manifestação. Segundo as notícias (não consegui achar o próprio relatório, não sei se chegou a ser tornado acessível), o inquérito conclui que foram cometidos abusos durante a intervenção, como bastonadas com o cotovelo acima do ombro, atingindo a cabeça e a parte superior do tronco dos manifestantes (vários desfaleceram e foram depois hospitalizados com fracturas), e abusos posteriores, com pessoas sendo levadas, revistadas e fechadas em celas de forma ilegal. Isto aconteceu há menos de três anos, num país onde a tensão estalava por toda a parte, de onde todos os dias emigrava gente e me chegavam mensagens de pessoas que eu não conhecia, estudantes que queriam ir para o Brasil, ou os pais deles escrevendo por eles, desempregados demitidos em pacote, cortes salariais sucessivos, casas que deixavam de poder ser pagas, uma espiral de aflição e indignidade. Não sei onde estão hoje esses candidatos a emigrantes, pais de emigrados, desempregados, em quem votam ou se votam, mas pensei neles ao longo desta campanha, a cada dia que saía da minha toca junto à Assembleia, tipo o corvo da Arca de Noé, e via a coligação PSD-CDS subir nas sondagens. Sempre bom ter a Assembleia a jeito em caso de passagem à clandestinidade.

4. Como é possível que isto aconteça depois de tudo o que aconteceu? Na última semana de campanha, o cientista político Pedro Magalhães, que há muito estuda sondagens, tentou responder a essa perplexidade (http://www.pedro-magalhaes.org/perplexos/). Ele começa por mostrar que não é verdade que PSD-CDS não estejam a ser penalizados: de acordo com as sondagens, perderão ter entre 500 mil e 700 mil votos (um em cada quatro ou um em cada cinco do que tiveram na última eleição). Depois, gráfico a gráfico, Magalhães mostra como essa penalização foi muito mais forte até Julho de 2013, quando Paulo Portas fez a sua pirueta de vaudeville (demito-me, é irrevogável, mas afinal não), e a partir daí PSD-CDS recuperam. Porquê? Pedro Magalhães adianta algumas hipóteses: o desemprego ter melhorado, ainda que à custa de emigração e do emprego precário; o crescimento económico, ainda que modesto; a melhoria da percepção das pessoas sobre a economia, ainda que negativa. Tudo isto deu uma levantada no declínio PSD-CDS, ainda que não o bastante para levantar a popularidade de Passos e Portas, e por isso eles furtam-se a aparecer em cartazes. Segundo este politólogo, a questão realmente intrigante, aliás, é por que PSD-CDS não recuperaram mais. Uma das hipóteses que ele sugere para responder a isto é a alienação dos pensionistas, eleitorado importante da coligação. E porque é que o PS não subiu mais? Por muitas pessoas verem o PS como também responsável pela crise, aponta Magalhães, mostrando como o PS nunca teve esta eleição nas mãos. Tudo isto significa, pois, que PSD-CDS vão mesmo ganhar hoje? Pedro Magalhães diz que claro que tudo pode acontecer, mas desde 1991, ou seja, desde que há sondagens dignas desse nome, nunca aconteceu um partido estar tão à frente até tão tarde e perder.

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enric vives-rubio

5. Então é isso. E não me dá igual, acredito em males menores como na democracia, tal como não me dá igual votar ou não, mas não apelo ao voto em particular nem em geral porque cada um saberá. O pedaço de utopia que isto ainda pode ter será cada um saber sem medo. Parece-me ler isso nos gráficos, não é que as pessoas acreditem em Passos e Portas, é a incapacidade do PS, a divisão da esquerda, o medo do escuro.

6. Essa grande personagem colérica e subitamente sentimental, patchwork de muitos escribas, que é o Deus do Génesis tinha facilidade em pôr os homens (praticamente) todos no mesmo saco. Nisso, direitas e esquerdas, crentes e não crentes, seguiram-no bastante: os homens, o povo. A direita conservadora tende a ver no povo uma potencial ameaça às elites e reforça os mecanismos que asseguram os privilégios. Na retórica da esquerda comunista, o povo é a vanguarda da revolução, quando se libertar de quem o subjuga. Mas o povo, que somos nós, não é bom nem mau, é bom e mau, e dependendo das dinâmicas, das pressões, das redes, isso resulta na multiplicação do melhor e do pior. De resto, pensando em rede, à escala do planeta, não me parece que vamos desta para melhor.

7. Talvez seja uma utopia do contra, mais para uma oposição do que para um governo, mas votar também é dizer não (como não votar pode ser) e, ainda que eu não votasse neles para governo, vários candidatos, do Livre ao PCP, passando pelo Bloco, me parecem óptimos para essa resistência: zero retrocesso na lei do aborto, direitos plenos para os homossexuais, defesa do Estado social, barreira contra os desmandos da Banca, a antítese de uma cultura agradecida, decorativa ou ufanista. A propósito, PàF assenta como uma bofetada nesta coligação. Portugal à frente do quê e para quê? Da quantidade de portugueses que esta coligação fez sentir a mais? Será a diferença entre patrioteiros e patriotas, mas sobre isso não me alongo. A ideia de pátria não me interessa, o nacionalismo não ama mais, confina e distingue. Interessa-me a ideia de amor a um lugar que se liga a outros por isso mesmo, não tem medo de se perder, está em toda a parte: partir porque é bom, ficar porque é melhor. A vontade é que faz a casa. E aí podemos todos cantar com a Patti Smith, people have the power. Somos nós e não há outros.

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