Não é sempre a mesma cantiga

Naturalmente já vos sucedeu: acordarem com uma música na cabeça e andarem a trauteá-la involuntariamente durante um dia inteiro. Parece uma coisa trivial, mas há um mundo denso, profundo, inquietante e ao mesmo tempo apaixonante nos ecos da música no cérebro humano. Curiosamente, quando morreu o célebre neurologista norte-americano Oliver Sacks, em Agosto deste ano (1933-2015), a menos citada das suas obras foi Musicofilia (Ed. Relógio de Água, 2008). O título transmite atracção, predilecção pela música. Mas o livro é muito mais do que isso: é um mergulho violento no mundo das relações cerebrais e físicas com a música. Numa sala de concertos, imersos no que escutamos, nem nos passa pela cabeça que cada um dos presentes possa ter uma percepção distinta do que é tocado. Não apenas pelo gosto, que vem da forma como foi educado, mas também por razões físicas, do ouvido ao cérebro. Sacks socorre-se dos mais estranhos e inacreditáveis exemplos (todos eles reais) para mostrar como a música pode ser um sonho ou um pesadelo, um dom ou uma ameaça, um prazer ou um suplício.

As alucinações musicais, por exemplo. Sacks começou a interessar-se por elas quando a sua mãe, cirurgiã, começou um dia, aos 75 anos, “a ouvir tocar incessantemente na sua mente canções patrióticas da Guerra Boer”. Não pensava nelas desde menina e não costumava reter melodias na memória, mas “ouviu-as”, nitidamente, durante duas semanas. E outra mulher, sua paciente, recordou (e conseguiu até registar num gravador) “inúmeras canções obscenas da sua juventude cantadas nos salões musicais dos anos 20”. Fantasmagorias sonoras, alucinações. Outra paciente tinha pesadelos com Easter Parade. Acabou por odiá-la. Mas várias pessoas escutam música alta, como se viesse de um rádio ou outro aparelho ali perto, quando ela ecoa apenas nas suas mentes, com insistência. Todas estas alucinações têm base fisiológica. Mas a relação música-cérebro não fica por aqui. Há quem, escutando um concerto, não oiça mais do que ruídos irritantes, semelhantes a loiça a bater ou a partir-se; quem, perante uma orquestra, consiga ouvir distintamente cada um dos instrumentos, mas em separado, como se tivesse diante de si um caos sonoro ininteligível; e quem, perante inúmeras músicas, não saiba distingui-las senão por serem ou não serem uma música determinada. Um neurologista francês, por exemplo, só distinguia dois tipos de música: A Marselhesa e as outras. Se lhe dessem a ouvir uma sinfonia de Mahler, diria apenas: “Não é A Marselhesa.” Sem sequer a distinguir.

Citando Daniel Levitin, Sacks diz que, quando ouvimos música, “estamos na verdade a ter a percepção de múltiplos atributos ou ‘dimensões’”: tom, registo, timbre, volume, andamento, ritmo, contorno. O exacerbamento ou a deficiente apreensão disto oscila entre o chamado ouvido absoluto e a amusia, ou seja, a perda patológica das capacidades musicais. E isto pode redundar em insensibilidade total a determinadas frequências ou ouvir como desafinadas, e até violentamente desagradáveis, notas afinadas em melodias anódinas. Há também quem “veja” ou “sinta” nas notas musicais cores, sabores, aromas. Passagens musicais azedas, salgadas doces; peças azuis, ocres, verdes. Um homem ficou enjoado ao saber que alguém “vira” o Ré maior como azul, quando para ele era vermelho. A este fenómeno chama-se sinestesia.

Não devemos, por cá, andar longe deste extraordinário mundo aonde nos conduz Sacks. Nos dias que antecederam a campanha, o que para uns soou como bela melodia foi para outros um tormento; onde um ouviu uma cristalina obra clássica, outro descortinou uma orquestra muito desafinada; a doce balada de uns foi o martírio sonoro de outros. Quarteto de cordas? Não, um trem de cozinha a bater no lajedo! Do mesmo modo, para certos grupos, muita gritaria assumiu a forma de coro angelical. E, tal como o neurologista francês que achava iguais entre si todas as músicas do mundo à excepção da Marselhesa, também não faltou quem achasse todos os partidos iguais uns aos outros, excepto o seu.

Mesmo assim, os nossos pacientes vão hoje a votos. E haverá um vencedor. Como de costume, quase todos dirão que votaram noutro.

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