Há 73.000 anos, um megamaremoto arrasou Cabo Verde

Um enorme colapso da parede do vulcão da ilha do Fogo gerou uma onda com 170 metros que transportou rochas com 700 toneladas na ilha de Santiago, defende novo estudo que inclui investigadores portugueses. Hoje, este seria um “cenário assustador”.

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Fotografia de satélite da ilha do Fogo NASA
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Ilha e Santiago Kim Martineau/Observatório da Terra Lamont-Doherty/Universidade da Columbia

Quem observa a ilha do Fogo a partir de uma fotografia de satélite, pode ver uma enorme dentada em toda a zona Leste da grande caldeira da ilha de Cabo Verde. A estranha forma é o resultado do colapso de parte do cone, há cerca de 73.000 anos. De uma só vez, 160 quilómetros cúbicos de material terão caído para o mar. O resultado foi a criação de uma onda com 170 metros que se abateu 7,5 minutos depois na ilha de Santiago, a 55 quilómetros de distância. A energia da onda era tanta, que empurrou blocos de rocha com centenas de toneladas durante centenas de metros, ilha acima.

Hoje, no planalto de Santiago, ainda se encontram aqueles blocos ciclópicos, que saltam à vista pela sua dimensão. Foram estes objectos que permitiram a uma equipa internacional de investigadores, com vários portugueses, relacionar os aspectos geológicos das duas ilhas e traçar o cenário catastrófico do megamaremoto, mostra o artigo publicado ontem na revista Science Advances. Nada impede que, no futuro, fenómenos como este voltem a acontecer.

José Madeira, geólogo da Faculdade da Ciência da Universidade de Lisboa (FCUL) e um dos autores do artigo, relata-nos o que se terá passado. “A massa rochosa [que desaba da ilha para o mar] ocupa espaço que estava ocupado pela água e desloca a massa de água produzindo a onda que depois se propaga”, explica o cientista. “A onda é gerada na costa Leste da ilha do Fogo e vai avançar em direcção a Leste, atinge toda a costa Oeste de Santiago e depois é refractada em torno da ilha.”

As ondas terão chegado às restantes ilhas do arquipélago de Cabo Verde, mas o efeito não foi igual em todas elas. “Nas ilhas baixas como na de Maio, na da Boavista e na do Sal, terá havido uma inundação bastante extensa do litoral. Nas ilhas mais altas, a onda poderá ter subido até cotas bastante elevadas, mas não entrou tão profundamente”, defende José Madeira.

É muito possível que o maremoto tenha chegado à costa africana, mais enfraquecido. Mas já não se sabe se atingiu também a Madeira, os Açores, ou Portugal continental, por estarem mais longe. Para se saber isso, é necessário continuar a fazer os mesmos estudos que estiveram na origem desta descoberta.

Tudo começou há uns anos, em Maio, uma ilha mais pequena e mais baixa que fica logo a leste de Santiago. “A certa altura encontrei depósitos sedimentares com características estranhas que associei a um grande tsunami”, relata José Madeira. “Na altura, pensei que a origem mais provável para esse evento poderia ter sido o colapso da ilha do Fogo.”

Segundo uma datação anterior a este estudo, o colapso do cone da ilha do Fogo (que foi notícia em 2014, devido a uma erupção vulcânica em Novembro que durou até Fevereiro de 2015) ocorreu algures entre há 124.000 e 65.000 anos. No entanto, havia uma grande discussão sobre o fenómeno. Não se sabia se tinha ocorrido de uma forma progressiva, com vários deslizamentos de material ao longo do tempo, ou se foi um evento único.

Estes dois cenários têm consequências diferentes na formação de um maremoto. O deslizamento sucessivo de rochas leva a que menos material entre no mar de cada vez, criando ondas mais pequenas. Enquanto um colapso único origina uma onda muito maior. Esta discussão não termina no caso da ilha do Fogo, em Cabo Verde, e a sua importância ultrapassa a curiosidade científica. Em várias ilhas em todo o mundo, há marcas de derrocadas semelhantes, e investigar o que sucedeu ajuda a avaliar os riscos de futuras derrocadas e os seus impactos.

Para tentar compreender o que se passou no caso de Cabo Verde, José Madeira dirigiu-se à ilha a leste do Fogo. “Fui à ilha de Santiago à procura de depósitos equivalentes e encontrei-os”, revela. Isto foi há cerca de cinco anos. É aqui que a sua história se encontra com as observações feitas por outro geólogo formado na FCUL, Ricardo Ramalho, que terminou o doutoramento em 2010, na Universidade de Bristol, Reino Unido, sobre a geologia de Cabo Verde.

“O Ricardo passou por Lisboa e mostrei-lhe os depósitos que tinha encontrado. Na altura, ele disse-me que tinha encontrado uma situação estranha [em Santiago] que não compreendia e que era um conjunto de grandes blocos dispersos pela superfície planáltica, cuja origem não era evidente. Então relacionámos os dois aspectos e percebemos que eles correspondiam ao mesmo evento”, diz José Madeira.

Os depósitos encontrados por José Madeira e os blocos que chamaram a atenção de Ricardo Ramalho estão em locais diferentes, na costa do extremo Norte de Santiago. A vertente litoral daquela zona sobe progressivamente com uma inclinação cada vez maior e termina num escarpado vertical chamado cornija. A partir daí inicia-se o planalto. Os depósitos estão mais perto do mar, antes da cornija, e resultam de areias marinhas e conchas trazidas pelo maremoto, que se misturaram com o material emerso. Os blocos, a 600 metros ou mais do litoral, estão no planalto, a 200 metros de altitude.

A equipa analisou cerca de 50 blocos. Alguns têm o tamanho equivalente a pequenas casas e pesam 770 toneladas. Muitos estão semiencobertos por acácias. Ainda assim, para os geólogos, eles foram uma revelação.

“Os basaltos que constituem a maior parte desses blocos só estão expostos na face da cornija, na vertente litoral. Eles tiveram de ser arrancados a essa cornija e depois transportados para o interior”, explica o geólogo. Foi isso que o megamaremoto fez, defendem os investigadores.

Relógio radiogénico
A partir daquela informação, os cientistas foram, por um lado, calcular há quanto tempo é que os blocos se encontravam no planalto, para datar o maremoto. E, por outro lado, estimaram qual seria o tamanho necessário da onda para ter energia suficiente para arrancar os blocos.

Para isso, usaram uma espécie de “relógio radiogénico”, diz o geólogo. Quando expostos ao ar e aos raios cósmicos, certos elementos químicos dos minerais das rochas alteram-se a um certo ritmo. A partir daí, é possível datar há quanto tempo é que uma rocha está exposta aos raios cósmicos. Este cálculo foi feito por Ricardo Ramalho, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, onde actualmente trabalha. Os resultados mostraram que aqueles pedregulhos estavam ali há cerca de 73.000 anos, uma idade que bate certo com a idade estimada para o colapso da ilha do Fogo.

Há 73.000 anos, o nível médio do mar estava 60 metros abaixo do de hoje. Por isso, a onda subiu a ilha até aos 270 metros de altitude. Segundo os cálculos da equipa, para ter movido todo aquele material, a onda teria de ter, no mínimo, 170 metros de altura. “Estas características tornam este evento num dos maiores mega-tsunamis preservados no registo geológico”, lê-se no artigo. O tsunami de 2004, que atingiu a Tailândia, chegou aos 30 metros de altura, um anão comparado com o de Cabo Verde.

“A onda praticamente submergiria os pilares da ponte sobre o Tejo”, compara José Madeira. “Os pilares da ponte têm 190 metros, a onda tem 170, apenas os 20 metros superiores dos pilares ficariam fora de água. Toda a região de Lisboa está a cotas mais baixas. Incluindo a serra de Monsanto. Portanto, a capacidade de penetração de uma onda destas na região de Lisboa seria absolutamente devastadora.”

Hoje, Santiago tem mais de 250.000 pessoas. Tal como nas outras ilhas do mundo, a maioria da população concentra-se no litoral. É arrepiante imaginar no presente este maremoto naquela ou noutra região do mundo. “É um cenário absolutamente assustador”, diz o cientista, argumentando que este estudo é importante porque revela que, no passado, existiram de facto colapsos de partes de cones vulcânicos a ocorrerem de uma só vez.

“Isto não prova que todas as cicatrizes de colapso [existentes no registo geológico] foram produzidas por um evento único e de grandes dimensões. Prova que alguns desses colapsos podem acontecer de um modo catastrófico. E portanto existe um potencial para gerar um tsunami de enormes dimensões”, explica o cientista.

O próximo passo da equipa será analisar os vestígios daquele maremoto noutras ilhas de Cabo Verde. Desta forma, será possível criar um modelo da onda e fazer uma estimativa do seu impacto no Atlântico. Ao contrário dos maremotos causados por sismos na crosta oceânica, que se propagam a partir de uma recta e não perdem a energia com a distância, estes maremotos criados por colapsos vão perdendo energia ao longo do tempo. Como surgem num ponto, e produzem ondas concêntricas, estas ondas vão distribuindo a energia por um círculo cada vez maior e diminuem de tamanho. É por isso que ainda não se sabe se este evento, há 73.000 anos, atingiu o litoral português.

Mas compreender a dinâmica deste tipo de maremotos é fundamental para tentar antecipar colapsos semelhantes e prever os seus impactos. “Não há um estudo sistemático desse potencial”, diz José Madeira, explicando que apesar destes fenómenos serem raros à escala humana, são frequentes à escala geológica. “A potencialidade de um colapso deste tipo na ilha de La Palma [nas Canárias] é real. E quem fala dessa ilha fala de outras, principalmente mais íngremes, como a ilha de Tenerife, a ilha do Pico nos Açores ou as costas altas da ilha da Madeira.

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