Em Curros, votar no PSD é tão natural como arrancar batatas

Nas legislativas de 2011, o PSD obteve na freguesia de Curros, Boticas, uns expressivos 94,8% dos votos. A freguesia foi extinta, mas nem essa mudança parece preocupar os seus 50 eleitores. Votar no PSD é conservar o consenso comunitário que prevalece entre esta população envelhecida e isolada.

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A aldeia, a dez quilómetros da sede de concelho, tem apenas 12 habitantes Lara Jacinto

Ao fim da manhã outonal desta segunda-feira, quase um terço da população da aldeia de Curros está sentada em volta de uma mesa de pedra instalada debaixo de um enorme carvalho plantado por um bisavô de Acácio Gonçalves num dia que se perdeu há muito na memória.

Na mesa feita com os restos de um espigueiro destruído por um ciclone há pão cozido no forno da aldeia, presunto de porco doméstico curado na lareira da casa de Acácio e vinho do ano produzido lá ao fundo, nas margens do Tâmega, servido em pequenas canecas de barro. Acácio é um homem de 61 anos, forte, calmo, modesto e vagamente tímido. Tão modesto que não acha nada de especial que o partido pelo qual foi presidente de junta durante décadas, o PSD, tenha obtido nas legislativas de 2011 uns expressivos 94.83% dos votos. “É normal” diz. Tão normal que, para ele, o único voto do PS nessas eleições “foi de alguém que se enganou, de certeza”.

Curros, uma aldeia perdida numa cumeada do Barroso, a uns dez quilómetros de Boticas, é um lugar inóspito para a política, estranho para o pluralismo e hostil aos dissensos normais da sociedade moderna. Dali avista-se ao longe Vidago e o traçado da auto-estrada A7, que parece existir apenas para sublinhar o isolamento da aldeia e o mundo silencioso, comunitário e fraterno que a distância foi preservando. Curros foi a freguesia onde o PSD obteve há quatro anos a mais alta votação em todo o país, mas nem essa façanha altera o estado de alma dos seus 12 habitantes permanentes. “É normal”, insiste Acácio com um sorriso que deixa transparecer alguma estranheza pelo interesse que o resultado suscita nos forasteiros. Mas, normal porquê? Nas eleições, como no quotidiano, o espírito comunitário do Barroso manifesta-se e votarem todos no mesmo partido é tão natural como ajudarem-se uns aos outros. “Ainda esta semana tive mais de 30 pessoas [cerca de metade dos eleitores das três aldeias que integravam a freguesia] a ajudar-me a apanhar as batatas”, diz Acácio.  

Esse espírito comunitário encontrou no modelo de eleição do presidente de Junta um lugar ideal para se desenvolver. Antes da fusão de freguesias, que obrigou Curros a juntar-se a Codessoso e Fiães, Curros tinha menos de 200 eleitores e a escolha do presidente da Junta era feita num plenário de braço no ar. Fernando Queiroga, presidente da Câmara de Boticas, acredita esse modelo, que durou desde o 25 de Abril até 2013, é a principal explicação para a hegemonia do PSD na freguesia. “Esses plenários preservaram o sentimento de unidade entre as pessoas”, diz Fernando Queiroga. Os eleitores juntavam-se, diziam o que estava bem e mal, votavam e iam para as suas casas. “Era tudo muito rápido, até porque nunca houve oposição”, recorda Acácio Gonçalves, que explica essa ausência com a falta de dinheiro. “Só há oposição quando há muito dinheiro e aqui havia muito pouco”, diz.

Com a reforma de Miguel Relvas, Curros deixou de ser freguesia e seria de esperar talvez que a extinção da junta e o fim do plenário eleitoral deixassem feridas nos habitantes da aldeia e nos moradores das outras povoações que integravam a freguesia - Antigo de Curros e Mosteirão. Não foi isso que aconteceu. “O presidente da câmara lá nos foi dando conforto e não ficámos zangados”, diz Acácio Gonçalves. Mas não foi apenas conforto que Fernando Queiroga e o seu antecessor Fernando Campos, um “dinossauro” do PSD impedido de se recandidatar em 2013 pela lei de limitação dos mandatos, deram aos moradores de Curros. “Aumentámos o FEF [recursos financeiros] em 20%”, diz Queiroga e ajustaram a orgânica das freguesias à representatividade das diferentes populações. Se o presidente é de Codessoso por ser a freguesia mais populosa, o vice-presidente é de Fiães e o secretário de Curros. “Para mim são os três presidente de Junta”, diz Fernando Queiroga.

De resto, era difícil conceber que uma população frágil e focada em resistir ao isolamento pudesse dar importância a alterações políticas no mapa autárquico. O encerramento do tribunal em Boticas ainda exaltou os ânimos, mas a política dificilmente tem poder suficiente para alterar as prioridades de Curros. A vida talvez não seja mais dura do que há 50 ou 60 anos - ao menos, hoje há pão -, mas é seguramente mais silenciosa e triste. O último nascimento na aldeia aconteceu há 23 anos – um jovem que saiu, estudou e trabalha num banco em Chaves –, a escola onde Acácio e o seu meio-irmão António, que após 43 anos de trabalho em França passa algumas temporadas em Curros, aprenderam a ler está em ruinas, a que entretanto foi construída ficou há anos ao abandono, a “casa grande” onde vivia a família rica começa a ser submersa pelas silvas e encontrar uma pessoa na rua é quase um acontecimento. A Câmara de Boticas tem duas carrinhas que circulam entre as aldeias isoladas e desertas como Curros recolhendo as receitas médicas e as facturas da luz e água e devolvendo no regresso medicamentos ou notícias. Para alguns, essa é a única ponte que existe com o exterior.

Mesmo ajudando, a prestação de serviços da autarquia jamais poderia acudir a tantos e tão diferentes casos de abandono que só a solidariedade dos vizinhos pode mitigar. Maria Garcia Gonçalves, 78 anos, vive sozinha numa pequena habitação da única rua da aldeia depois de um acidente ter enviado primeiro para o hospital e depois para um lar em Boticas. Para o visitar, tem de gastar 20 euros de táxi, um absurdo para a sua magra pensão. Como não tem filhos, só o auxílio local torna a sua existência mais tolerável e nesse processo, o líder comunitário (e político) desempenha um papel essencial. “Sou amigo de toda a gente, tanto quanto era quando fui presidente da junta”, diz Acácio Gonçalves, que vive essencialmente do tratamento de algum gado e da pequena agricultura.    

A política acaba por isso por ser apenas a continuidade da prática quotidiana da entreajuda por meios mais sofisticados. Os comícios, os cartazes ou qualquer outra propaganda eleitoral, por exemplo, não existem. De partidos, cisões, programas e futuro nem se fala. Nem por estes dias, nem nunca. “Nunca houve campanha por aqui”, atesta José Pereira Mestre, secretário da nova união de freguesias e morador na vizinha Antigo de Curros. Não houve porque, garante, nunca foi preciso. “As pessoas tratam-se bem umas às outras e a câmara trata bem de todos”, sublinha como quem pretende justificar a ausência de divergências partidárias. Então, para que serve afinal a Junta? “Para fazer o que falta fazer”, diz Mestre. Caminhos rurais, arruamentos, limpezas de mata e, principalmente, dar apoio social a quem mais precisa. Ou seja, de todos, ou quase todos.

Com o alento de Agosto, quando a população de Curros triplica com a chegada dos emigrantes, a servir de lastro para a travessia do duro Inverno que se aproxima, a aldeia prepara-se por isso para fazer no domingo o que sempre fez. Nas autárquicas de 2013, dos 49 habitantes das três aldeias de Curros que votaram, 43 escolheram o PSD, um o PS e três a CDU – talvez em jeito de vénia ao trabalho de apoio aos agricultores que o candidato comunista à câmara, Xavier Barreto, um jovem engenheiro florestal que faz parte da direcção da Confederação Nacional da Agricultura, tem prestado. Votar no partido dominante é por ali uma forma de evitar que o comunitarismo sofra a erosão do combate partidário. O que pode parecer estranho numa sociedade plural e com interesses divergentes ou conflituosos. Mas que por ali, naquelas aldeias remotas e envelhecidas, acaba por ser visto de forma tão natural como ajudar Acácio Gonçalves a arrancar batatas.

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