A grande festa da democracia

Falou-se de tudo na campanha eleitoral: de reis, de escudos, de austeridade e até de pensos higiénicos.

Hoje, à meia-noite, termina a campanha eleitoral para as legislativas de 4 de Outubro. Quarenta anos depois das primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte e 40 anos depois de Chico Buarque ter saudado a Revolução dos Cravos com a canção Tanto mar, apetece dizer: “Foi bonita a festa, pá. Fiquei contente.” Não só fiquei contente, como fiquei esclarecido. Foram apresentadas ideias, debatidas propostas, rebatidos argumentos com 16 forças políticas a lutarem pelo voto dos portugueses na grande festa da democracia.

Aqui e ali, há sempre alguém a exagerar e a querer estragar a festa. Um deles foi o PCTP/MRPP que afixou cartazes a ameaçar “Morte aos Traidores”. A Comissão Nacional de Eleições (CNE) disse tratar-se de uma “metáfora”, acrescentando que “os visados não se queixaram”. Pudera! A CNE estava à espera que alguém fosse à esquadra da polícia dizer: "Bom dia, sou um traidor e queria apresentar uma queixa contra o partido do sr. dr. Garcia Pereira que ameaçou matar-me”?

Mas o MRPP foi uma excepção numa campanha em que a maioria dos pequenos partidos tentou apresentar propostas pela positiva. Houve propostas para todos os gostos, algumas patetas, algumas ridículas, umas boas, outras nem por isso. Houve quem propusesse o regresso do escudo e outros que alvitraram o regresso do rei. Uns querem proibir o sexo com animais, outros querem acabar com a corrupção. Há quem tenha prometido a felicidade aos portugueses, sugerindo que se passasse a calcular a Felicidade Interna Bruta (FIB). Na intimidade do lar, uns como Marinho Pinto prometem um combate sem tréguas à "cultura onanística que se tem vindo a disseminar na sociedade" e outros como o PAN propõe a substituição do uso de pensos higiénicos e de tampões por um recipiente reutilizável. É a grande festa da democracia. Cabe tudo, cabem todos.

Entre os partidos que actualmente têm assento parlamentar, as campanhas eleitorais da CDU e do Bloco de Esquerda surpreenderam pela positiva e ambos estão a lutar para tentar chegar a um número redondo de deputados. Jerónimo de Sousa quer passar dos 16 para os 20 – a última vez que o PCP teve duas dezenas de deputados foi há quase 30 anos. Catarina Martins não vai provavelmente repetir a proeza de 2009 de Francisco Louça dos 16 deputados, mas as sondagens permitem-lhe almejar subir dos oito para os dez. As campanhas de ambos conseguiram surpreender, não tanto pela mensagem, que a cassete continua igual, mas pela energia, capacidade de mobilização e facilidade em agarrar os temas da actualidade e transformá-los em armas de arremesso político contra a direita e contra os socialistas. Às vezes, diga-se, com alguma ligeireza e demagogia à mistura. Mas o nosso sistema político precisa de uma CDU e de um Bloco fortes, o quanto baste. Não para governar, porque têm ideias anacrónicas e nalguns casos descabidas e perigosas, mas para fiscalizar a governação. E isso quer um, quer outro são competentes a fazer.

Os socialistas levaram tareia da direita e da esquerda, mas foram sem dúvida a grande desilusão da campanha eleitoral. António Costa chegou tarde à campanha. Chegou tarde, porque demorou uma eternidade para decidir desafiar a liderança de António José Seguro; e uma oposição não se constrói da noite para o dia. Muitos dos erros que António Costa cometeu na recta final da campanha já os devia ter cometido há dois, três, quatro anos. Para isso é que servem as travessias no deserto.

Chegou tarde, teve de encurtar caminho e desencantar um programa eleitoral pronto-a-vestir que foi feito, e de uma forma bastante competente, diga-se, por Mário Centeno. Mas até o Excel de Mário Centeno chegou atrasado. O economista gizou um programa para ajudar a tirar o país de uma situação de emergência, mas quando o apresentou a economia já estava a crescer. Centeno faz lembrar aquele bombeiro que chega para apagar o fogo, quando o incêndio já está praticamente dominando. E continua teimosamente a regar, arriscando-se a provocar uma grande inundação. A proposta de baixar a TSU dos trabalhadores para espevitar o consumo, à custa das pensões futuras, é uma ideia brilhante para uma situação de emergência, e arriscada numa altura em que o consumo já está a crescer.

Costa tentou agarrar o eleitorado do centro e roubar votos à direita com as folhas de Excel de Mário Centeno e ir buscar o voto útil à CDU e ao Bloco, com um discurso mais inflamado à esquerda. Talvez o tenha inflamado demais e afugentou algum eleitorado do centro, quando radicalizou as propostas, dizendo que iria chumbar um Orçamento de direita, qualquer que ele fosse, se perdesse as eleições.

A coligação PSD-CDS fez-se de morta nesta campanha e não lutou para tentar ganhar as eleições com propostas e argumentos. Lutou apenas para que o PS as perdesse, o que poderá eventualmente vir a dar no mesmo. Ou não. Mesmo com pouco ou nada para dizer às pessoas que iam encontrando pela frente nas arruadas e nos comícios, Passos Coelho e Paulo Portas fizeram uma campanha sem amadorismos, conseguindo esconder as suas fragilidades e colocando a nu as dos adversários.

Amanhã vamos reflectir, no domingo vamos votar e na segunda-feira vamos esperar que continue a grande festa. A democracia não se esgota no partido que ganha as eleições. Um vai ganhar e o outro vai perder. Um vai governar e o outro vai fiscalizar e ajudar a criar condições de governabilidade. Gostamos de festas, mas ninguém tem pachorra para uma festa igual já daqui a seis meses.

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