O capitalismo mafioso

O “escândalo Volkswagen” é um golpe doloroso para a reputação e o capital da empresa, mas as consequências que dele podemos extrair não se limitam à gigantesca — e ainda em crescimento — contabilidade dos danos. Há um plano político e teórico sobre o qual deve incidir a avaliação do que aconteceu. E esse plano é aquele em que se torna obrigatório reconhecer na fraude não um erro ou uma imprudência, mas uma expressão estruturalmente mafiosa dos métodos de acumulação do capital. A ideia de que a forma da mafia é endógena ao capitalismo, dando origem a um “capitalismo mafioso”, potenciado pelo processo de globalização produtiva e financeira do capital, foi defendida por dois notáveis professores de Economia, o italiano Carlo Vercellone e o francês Didier Lebert, e foi o tema de uma revista francesa de sociologia chamadaIllusio em 2010 (nº 6/7). De fraudes e/ou crimes semelhantes a este está a história empresarial cheia. Mas a partir do momento em que se generalizou uma visão idílica do modo de funcionamento das empresas, em que o “espírito do capitalismo” passou a ser encarnado pelo “empreendedor” esforçado e virtuoso, ungido pela concepção culturalista e ética de Max Weber, a ideia de um capitalismo mafioso parece uma grosseira caricatura, ao nível daquelas imagens (tão queridas de um marxismo vulgar e primário) do capitalista gordo e barrigudo a fumar charuto ou, numa outra versão a que Vercellone e Lebert se referem, do “Schumpeter com uma kalashnikov”. Ora, um escândalo deste teor e desta dimensão, ao eclodir na Volkswagen, isto é, mesmo no coração do mítico capitalismo ético e socialmente responsável, torna evidente que a actividade empresarial, operando no centro da economia formal, não deixa de usar instrumentos à margem da norma. Do ponto de vista da economia política clássica, o que aconteceu na Volkswagen é visto como uma excepção e como um elemento exógeno ao sistema. E recorre-se ao álibi de que se trata de uma queda nas formas predadoras ou/e criminosas próprias do capitalismo inicial ou mesmo de um estado primitivo e pré-económico da sociedade. Vercellone e Lebert mostram, pelo contrário, aquilo que essa análise económica, idealizando as leis do mercado, não é capaz de apreender: que o capitalismo favorece e institucionaliza os comportamentos de tipo mafioso, endógenos ao sistema, não na forma tradicional da criminalidade organizada, mas enquanto forma sócio-económica. E mostram mais: que o capitalismo cognitivo (isto é, aquele em que é central o papel do trabalho intelectual e imaterial) e o capitalismo mafioso estão estreitamente ligados. Deste ponto de vista, tem de ser visto como pura ideologia o discurso neoliberal sobre a concorrência perfeita e não falseada. Nesse número da revista Illusio há uma secção dedicada às instituições desportivas, à “honrosa família desportiva” como “protótipo do capitalismo mafioso”. Reparemos na coincidência: ao mesmo tempo que eclodia o “escândalo Volkswagen”, soube-se que o ex-presidente da FIFA estava a ser investigado pela polícia suíça (note-se que o jornalista de investigação Andrew Jenning publicou nesse número de 2010 da dita revista um artigo onde dizia que “a FIFA criou um modelo mundial de corrupção”). Na análise e definição do capitalismo mafioso, Braudel é evocado contra Max Weber: para o historiador francês, o “espírito do capitalismo” não é de facto uma categoria que possa ser definida por uma ética que está para além da acumulação do capital e não há nenhuma relação necessária entre a essência do capitalismo e essa vocação legal e produtiva de inspiração weberiana.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O “escândalo Volkswagen” é um golpe doloroso para a reputação e o capital da empresa, mas as consequências que dele podemos extrair não se limitam à gigantesca — e ainda em crescimento — contabilidade dos danos. Há um plano político e teórico sobre o qual deve incidir a avaliação do que aconteceu. E esse plano é aquele em que se torna obrigatório reconhecer na fraude não um erro ou uma imprudência, mas uma expressão estruturalmente mafiosa dos métodos de acumulação do capital. A ideia de que a forma da mafia é endógena ao capitalismo, dando origem a um “capitalismo mafioso”, potenciado pelo processo de globalização produtiva e financeira do capital, foi defendida por dois notáveis professores de Economia, o italiano Carlo Vercellone e o francês Didier Lebert, e foi o tema de uma revista francesa de sociologia chamadaIllusio em 2010 (nº 6/7). De fraudes e/ou crimes semelhantes a este está a história empresarial cheia. Mas a partir do momento em que se generalizou uma visão idílica do modo de funcionamento das empresas, em que o “espírito do capitalismo” passou a ser encarnado pelo “empreendedor” esforçado e virtuoso, ungido pela concepção culturalista e ética de Max Weber, a ideia de um capitalismo mafioso parece uma grosseira caricatura, ao nível daquelas imagens (tão queridas de um marxismo vulgar e primário) do capitalista gordo e barrigudo a fumar charuto ou, numa outra versão a que Vercellone e Lebert se referem, do “Schumpeter com uma kalashnikov”. Ora, um escândalo deste teor e desta dimensão, ao eclodir na Volkswagen, isto é, mesmo no coração do mítico capitalismo ético e socialmente responsável, torna evidente que a actividade empresarial, operando no centro da economia formal, não deixa de usar instrumentos à margem da norma. Do ponto de vista da economia política clássica, o que aconteceu na Volkswagen é visto como uma excepção e como um elemento exógeno ao sistema. E recorre-se ao álibi de que se trata de uma queda nas formas predadoras ou/e criminosas próprias do capitalismo inicial ou mesmo de um estado primitivo e pré-económico da sociedade. Vercellone e Lebert mostram, pelo contrário, aquilo que essa análise económica, idealizando as leis do mercado, não é capaz de apreender: que o capitalismo favorece e institucionaliza os comportamentos de tipo mafioso, endógenos ao sistema, não na forma tradicional da criminalidade organizada, mas enquanto forma sócio-económica. E mostram mais: que o capitalismo cognitivo (isto é, aquele em que é central o papel do trabalho intelectual e imaterial) e o capitalismo mafioso estão estreitamente ligados. Deste ponto de vista, tem de ser visto como pura ideologia o discurso neoliberal sobre a concorrência perfeita e não falseada. Nesse número da revista Illusio há uma secção dedicada às instituições desportivas, à “honrosa família desportiva” como “protótipo do capitalismo mafioso”. Reparemos na coincidência: ao mesmo tempo que eclodia o “escândalo Volkswagen”, soube-se que o ex-presidente da FIFA estava a ser investigado pela polícia suíça (note-se que o jornalista de investigação Andrew Jenning publicou nesse número de 2010 da dita revista um artigo onde dizia que “a FIFA criou um modelo mundial de corrupção”). Na análise e definição do capitalismo mafioso, Braudel é evocado contra Max Weber: para o historiador francês, o “espírito do capitalismo” não é de facto uma categoria que possa ser definida por uma ética que está para além da acumulação do capital e não há nenhuma relação necessária entre a essência do capitalismo e essa vocação legal e produtiva de inspiração weberiana.

Foto
JOHN MACDOUGALL/AFP