Nem forma, nem conteúdo. Substância artística é

Corre nas redes sociais digitais um vídeo, que ultrapassa de longe a importância em si da denúncia da repressão e a luta pelas liberdades fundamentais.

Explico para quem desconheça o facto: em Espanha, as “autoridades”, decidiram fazer uma lei que regulamenta, limita e proíbe diversas maneiras de manifestação, o seu percurso e até palavras de ordem; e cerceia a própria liberdade de imprensa, proibindo captar imagens em que a polícia apareça, mesmo que seja a espancar um velho, uma criança, um jornalista! O vídeo apresenta pessoas holografadas em manifestação em zonas e de formas proibidas. Emociona, é politicamente eficaz e prefigura a abertura de uma nova forma de luta contra a fascização da União Europeia. São tudo coisas e causas que me tocam. Mas há um outro aspecto que me despertou para um outro assunto, mais intemporal.

Remete-me, no plano da Estética, para a polémica sobre se o conteúdo de uma obra de arte determina uma só forma estética para ele ou a forma é a única expressão da Estética, servindo todos os conteúdos. Entre os primeiros estiveram em evidência os totalitarismos extremados do século XX. Por isso, uma obra de Kandinsky, era “degenerada” no III Reich e “reaccionária” na URSS pós-Lunatcharski: não servia a missão salvífica da Raça Superior Ariana, nem a da Classe Operária Redentora. Devia a obra ser banida da esfera pública, quando não o próprio autor contumaz. Com um argumentário de fés, tal como Torquemada enviava os “hereges” para a fogueira do Santo Ofício, a fim de purificar as alminhas perdidas. A esta interpretação se opuseram vários intelectuais de esquerda, incluindo comunistas que se movimentavam com dificuldade de se fazer ouvir, caminhando como um elefante sobre folhas de nenúfares; à direita liberal que se mantinha fiel a uma liberdade trina (social, económica e de pensamento), a questão não se lhe punha. Mas, posteriormente, ainda durante a existência dos dois ‘blocos’, evoluíram e involuíram posições, nos dois sistemas. Curiosamente, mesmo antes da Perestroika, houve um esforço do próprio sistema no chamado “Socialismo Real” para se abrir, embora sem grande capacidade para sair da cristalização a que chegara. Não menos curiosamente, antes das Troikas, são os “neoliberais”, para quem da noção de liberdade importa apenas a económica, que se fecham em novos e sofisticados modos de ‘censura’ com abaixamento da qualidade (técnica e criativa), reabsorvendo o ruído, de forma a ser um silêncio-outro, como Chomsky explica melhor do que ninguém.

Mas recentremo-nos na questão em si. Estou entre os que pensam que a, pedra angular da Estética não reside nessa dicotomia de forma/conteúdo, que tomo por uma formulação errada. Tenho para mim que ao ideal de uma procura do romantismo tardio da beleza para si e por si, sucedeu uma reacção desastrada em resultado de um “positivismo totalitário e beatífico” seguido de um “empirocriticismo táctico”. A forma não é uma ‘abstractização’ estética anódina, nem é uma mera ‘plasticização’ plasmando a ‘riqueza’ do conteúdo. Como no vídeo em causa se pode ver, a divisão dos conceitos do tipo torna-se quase jurássica. Apesar do vídeo ser construído como um objecto de agit-prop, constitui-se em documento duplamente histórico: sobre a monarquia “democrática” espanhola e, mais relevante ainda, das teorias nas Artes e Comunicação. Trata-se de um caso paradigmático do entendimento que perfilhamos sobre a inexistência de razão válida (artística e epistemológica) para a polémica fora do contexto epocal e de pouca profundidade e demasiado dogmatismo.

Vejamos o objecto e consequências. O Poder Político, para induzir a ideia de que não há desacordo social, inibe a imagem do real, obtida pela proibição de ser outra: substitui o lugar dos protestos de rua por uma imagem sociológica virtual, em sentido lato. O Contrapoder responde com projecções holográficas, assumidamente virtuais, no sentido tecnológico do termo, para afirmar que a realidade real é outra. En la calle no pasa nada, diz o Poder para mostrar, na materialidade que controla, a paz social; pero las calles están llenas de personas (desmaterializadas), dizem os autores do vídeo, procurando mostrar, no próprio processo do objecto, que a desmaterialização física não resulta de uma paz social, mas tão só de um “estado de sítio”. Há aqui como que uma afirmação no próprio instrumento usado como canal comunicacional: o vídeo holografado. O medIum virtual discursa o real, enquanto a realidade faz um discurso virtual, cenografando-se.

Mas a novidade não reside no jogo de espelhos invertidos: todo o discurso político, sobretudo dos Poderes, é cenografia. O que é evidente aqui é que esse cenário é desfeito com um cenário assumidamente ficcional que se propõe deixar óbvia a falsidade e fragilidade do outro cenário, invadindo-o, com uma espécie de consciências fantasmáticas. Ora, esta forma estética do vídeo em causa substantiviza-se em si e por si, feita praxis (pouco importa se com ou sem propósito teórico-estético do facto). “Forma” e “conteúdo” não se distanciam como realidades: são a mesma. Nem sequer se trata de um clássico comercial sobre o que vende mais: a marca ou o conteúdo do produto, serviço ou bem, apresentada como o dilema do ovo e da galinha. Se quisermos fazer uma analogia, será melhor dizer que uma mesa de madeira é uma mesa de madeira e não porque é madeira feita mesa ou uma mesa feita em madeira. É assim o objecto artístico: é o que é na resultante final única se constitui substância.

Encenador, Director Artístico de Dogma\12

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