Morreu Brian Friel, o Tchékhov irlandês

Considerado o grande dramaturgo irlandês da sua geração, escreveu dezenas de peças, várias delas adaptadas ao cinema, como Philadelphia, Here I Come ou Dancing at Lughnasa. Em Portugal, foi traduzido por Paulo Eduardo Carvalho e encenado por Nuno Carinhas.

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Brian Friel DR

O dramaturgo irlandês Brian Friel, a quem chamavam “o Tchékov irlandês”, morreu esta sexta-feira, aos 86 anos, na sua casa de Greencastle, na região irlandesa de Donegal. Considerado o mais importante dramaturgo irlandês da sua geração, as suas peças ajudaram a formar muitos actores que depois se distinguiriam no cinema, como Liam Neeson ou Stephen Rea.

A sua peça mais conhecida é talvez Dancing at Lughnasa (1990), que o cineasta Pat O’Connor adaptou ao cinema em 1998 no filme homónimo interpretado por Meryl Streep e Michael Gambon. Em 1975, John Quested já levara ao grande ecrã Philadelphia, Here I Come (1964), recorrendo a dois actores, Donald McCann e Des Cave, para interpretar respectivamente a faceta pública e privada do protagonista, Gar.

Boa parte das suas peças têm como cenário Ballybeg – anglicização de Baile Beag, que significa “pequena povoação” em gaélico irlandês –, um lugar imaginário inspirado em Glenties, a vila onde morava a sua mãe. Depois de um primeiro festival internacional dedicado à obra de Friel em 1991, e de um segundo em 2008, Glenties voltou já este ano a acolher uma iniciativa semelhante, à qual o dramaturgo, doente há vários anos, já não pôde comparecer.

O rótulo de Tchékov irlandês, não o deve apenas ao facto de ter um talento comparável ao do contista e dramaturgo russo. Brian Friel traduziu várias obras de Tchékov, e este foi uma influência determinante na sua própria dramaturgia, que inclui várias peças construídas sobre enredos e personagens tchekovhianos, como The Yalta Game (2001), inspirado num dos seus contos, ou Afterplay (2002), que imagina um encontro, num café de Moscovo, entre o André de As Três Irmãs e a Sónia do Tio Vânia.

Brian Friel começou a publicar no final dos anos 50, e em meados da década seguinte alcançara já uma considerável projecção, sobretudo desde a bem sucedida apresentação de Philadelphia, Here I Come! na Broadway. Mas deve a sua consagração internacional a Dancing at Lughnasa (1990), uma peça de ressonâncias autobiográficas inspirada na vida da sua mãe e das suas tias na Irlanda dos anos 30, contada por um adulto a partir das suas memórias de criança. Antes de ser adaptada ao cinema, a peça já conseguira a façanha de conquistar simultaneamente um Tony, o prémio Laurence Olivier e o prestigiado prémio do New York Drama Critics Circle.

Em Portugal, descontada uma episódica tradução de Lovers: Winners and Losers (1967), com o título Amantes e Triunfantes, publicada no final dos anos 60 na revista Teoremas de Teatro, a obra de Friel só chega bastante tarde, e em boa medida graças ao tradutor, encenador e professor da Faculdade de Letras do Porto Paulo Eduardo Carvalho, precocemente desaparecido em 2010, cujas traduções das peças O Fantástico Francis Hardy, Curandeiro (Faith Healer, 1979), Traduções (Translations, 1980), Danças a Um Deus Pagão (Dancing at Lughnasa, 1990) e Molly Sweeney (1994) estão recolhidas num volume da Cotovia publicado em 2000.

“Foi o Paulo Eduardo Carvalho que nos deu a conhecer o Friel, de quem ele traduziu várias coisas, e com quem tinha uma relação pessoal”, diz o encenador Nuno Carinhas, que já encenou quatro peças do dramaturgo irlandês, a primeira das quais, Molly Sweeney, em 1999. Em 2003, juntou num só espectáculo Uma Peça Mais Tarde (Afterplay) e O Jogo de Ialta, com os actores João Lagarto e Sandra Faleiro, uma co-produção do Teatro Nacional de S. João e do grupo Escola de Mulheres, dirigido pela actriz e encenadora Fernanda Lapa, que já antes, lembra Carinhas, “tinha feito as Danças a Um Deus Pagão”.  Também o Teatro da Malaposta levou ao palco em 1996 uma peça de Friel, Traduções, numa encenação de Antonino Solmer.

“O Tchékhov, o Beckett e o Friel são três autores que me ajudaram muito a crescer”, diz Carinhas, notando que “há algumas confluências entre eles, um modo de tratar a alma humana que é especial”. Acrescentando que sempre sentiu “muito próximo” o universo marcadamente irlandês de Friel, Carinhas sublinha que o dramaturgo, com “a sua escrita muito elaborada e as suas personagens grandiosas, e às vezes muito contraditórias, é sempre um grande desafio para os actores". Uma prova à qual fizeram questão de se submeter, entre muitos outros, intérpretes tão prestigiados como James Mason, John Hurt, Tom Courtenay, Jason Robards ou Ralph Fiennes.

Nascido em 1929 perto de Omagh, na Irlanda do Norte, filho de um professor primário e político de convicções nacionalistas e da responsável dos correios de Glenties, Friel manter-se-ia sempre fiel à sua herança familiar e, a exemplo de um William Faulkner na ficção, conquistaria reconhecimento internacional com uma obra profundamente enraizada na realidade local do mundo em que cresceu.

Antes de se tornar dramaturgo, começou por escrever contos no início dos anos 50. No final dessa década tentou o teatro radiofónico, e em 1963 viajou para Minneapolis, nos Estados Unidos, a convite do director e produtor teatral inglês Tyrone Guthrie, que ali acabara de fundar um teatro. “Foi a minha primeira saída da claustrofóbica Irlanda”, diria mais tarde Friel a respeito desta viagem.

É Guthrie que o estimula a escrever Philadelphia, Here I Come, cujo sucesso na Broadway o irá decidir a tornar-se um escritor a tempo inteiro. Conhecido pelo seu recato – frequentava pouco os meios teatrais e raramente dava entrevistas –, Friel deixa uma vasta obra, construída ao longo de seis décadas, e que inclui dois volumes de contos, textos para rádio, 24 peças originais e ainda versões de Tchékhov, Turguenev ou Ibsen.

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