Lura ao sabor da memória

Valorizar o património, a música e as histórias de Cabo Verde: é o que Lura quer com o seu novo disco, Herança, que vai apresentar ao vivo no Tivoli, em Lisboa, no dia 13.

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N’Krumah Lawson-Daku/Lusafrica

No Verão de 2014, o disco já espreitava. Era um filho ainda por nascer, como ela então o descreveu, mas foi nos palcos do CCB e da Casa da Música que se preparou o parto. E Herança aqui está, de uma sua beleza serena e sensual, prova de uma maturidade que se foi construindo a pulso e aqui se confirma, em definitivo.

Lura, cabo-verdiana nascida lisboeta (na Maternidade Alfredo da Costa, em 31 de Julho de 1975), foi construindo a sua ligação a Cabo Verde com aproximações sucessivas. Hoje, é lá que vive. “Percebi que quanto mais eu ia descobrindo sobre Cabo Verde, mais havia para descobrir. Eu tinha uma imagem idealizada, através das histórias que me contavam, mas com aquela ideia de quem vai passar férias a um sítio. Mas a viver lá tenho uma visão mais realista. E foi decisivo, o facto de lá morar, para a escolha de certas coisas, de certos temas.”

O disco que agora chega às lojas portuguesas e que vai ser apresentado ao vivo no Tivoli, em Lisboa, no dia 13 de Outubro, tem um nome que condiz com esse percurso: Herança. Sucessor de Di Korpu Ku Alma (2005), M’Bem Di Fora (2006) e Eclipse (2009), que haviam deixado a alguma distância os anteriores Nha Vida (1996) e In Love (2002), reflecte na palavra do título a dualidade das coisas boas e más que Cabo Verde, como qualquer outro país, tem inscritas no seu passado. E com particular incidência na situação da mulher. “O facto de eu ser mulher e ter sido criada por uma mulher”, diz Lura, “ajuda muito nessa sensibilidade para as mulheres, para as lutas das mulheres. Os meus pais separaram-se era eu muito jovem, isso marcou-me bastante. Em Cabo Verde eu acompanho diariamente a luta da mulher que acorda às quatro da manhã para ir buscar o peixe e a fruta para vender.” Mas houve uma história que particularmente a marcou: “Numa manhã de domingo, às oito horas, bateu-me à porta uma mulher a vender cuscuz e leite dormido [fermentado tradicionalmente], que é maravilhoso tomar ao pequeno-almoço. Tocou-me, aquele dia: eu no conforto da minha casa e ali estava uma mulher que acordou muito mais cedo para fazer aquele cuscuz quentinho.” Seria provavelmente a sua única forma de ela ganhar a vida. Como uma vendedeira de fruta com quem Lura falou e que “estava muito orgulhosa por ter conseguido pôr o filho na Faculdade. Tem três filhos a estudar e foi só a vender fruta que ela conseguiu isso!”

Daqui, deste passado-presente, nasceram canções. Herança vive delas, garbosamente.

Atrás de histórias
“A escolha dos meus temas passa pela vivência”, diz Lura. Maria di Lida, escrita por Fernando Jorge Tavares da Silva, tinha as palavras que ela imaginou para falar daquelas mulheres e por isso Lura incluiu-a no disco. Mas ela também assina três canções: Sabi di más, Barco di papel (gravada com Richard Bona, que ela conheceu em Cabo Verde, no Kriol Jazz Festival) e Di undi kim bem (com Abraão Vicente). “Eu vou atrás de histórias, às vezes nem é tanto dos compositores. É a história em si que me cativa, consoante o meu estado de espírito no momento. E agora eu sinto-me assim, a viver cada vez mais este património cabo-verdiano.” Património que ela trata como herança recebida, com os cuidados necessários. “Até há pouco tempo atrás eu estava muito inspirada nas histórias dos meus pais, mas agora quero ir mais atrás, aos tempos da escravatura, quando as ilhas foram descobertas.” Daí que esteja no disco um tema como Goré, de Mário Lúcio (que também assina Mantenha cudado, Cidade velha, X da questão ou Herança, portentosamente gravado com Naná Vasconcelos), que conta “a viagem dos escravos sem volta” num ritmo continental africano, congolês, o sukusse.

Maria di lida com Abraão Vicente
Nhu Santiagu com Elida Almeida

“Há este meu gosto de tocar outras sonoridades. No caso de Goré, porque os escravos são africanos em geral. Em Mantenha cudado, há Pedro Jóia a tocar flamenco. Herança, que fiz com o Naná Vasconcelos [histórico percussionista brasileiro], é um tema de reflexão social e religiosa, que vai buscar o ambiente da reza dos rabelados. Já o X da questão remete para barlavento, para a coladera, e Cidade velha para a soul music.”

No disco há ainda outra voz: Elida Almeida. Lura gravou uma canção escrita por Elida, Nhu Santiagu, e cantam-na em dueto. “É uma luz que surgiu um Cabo Verde. Gosto muito dela, tem um talento enorme. Na verdade, quase fazemos parte de duas gerações, eu tenho mais vinte anos que ela… Vi-a cantar na Praia e fiquei encantada no primeiro segundo. Ela começou a cantar e o tempo parou.” Elida estreou-se em 2015 com Ora doci ora margos, aos 21 anos, idade de Lura quando lançou o primeiro disco, Nha Vida.

Num olhar para outras heranças, há Nesse temp di nha bidjissa, Ambienti más seletu (sobre a rejeição do funaná, considerado “selvagem” em certa época), Somada e Sema Lopi, canção autobiográfica escrita pelo próprio Sema Lopi [“tem quatro filhas, cada uma de mãe diferente”], que “retrata o modo de estar do homem cabo-verdiano”.

No abraçar destas histórias, e dos seus ritmos, Lura mostra-se com uma vocalização mais certeira e madura, mantendo a chama de sempre no ponto exacto: o da empatia com o público. A música, essa, trá-la agarrada à pele há muito. Deste disco, só espera uma coisa. "Que digam que estou a valorizar aquilo que é nosso. É essa a minha intenção: valorizar o património, a música e as histórias de Cabo Verde."

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