O espectáculo que o Teatro da Palmilha Dentada nunca iria fazer

Os Observadores de Pássaros pode ser visto até dia 18 no A22, em Gaia – no mais absoluto silêncio.

Foto
Em Os Observadores de Pássaros quiseram suspender a linguagem falada dr

Ultimamente temos esta tendência para falar do lixo, parece querer atirar-nos à cara o Teatro da Palmilha Dentada neste espectáculo, Os Observadores de Pássaros, em que resolveu calar-se. Não por não ter nada a dizer sobre a maneira suicida como todo o planeta se deixa enterrar vivo debaixo de toneladas de embalagens de plástico, ou sobre a maneira assassina como as agências de rating continuam a classificar a dívida portuguesa, ou – e agora uma piada privada para quem vive, como a Palmilha, numa cidade sitiada por “um predador filho da mãe” – sobre o perigo cada vez mais iminente de o céu nos cair em cima da cabeça sob a forma pós-hitchcockiana de um ataque de gaivotas. Antes pelo contrário.

Estreada há uma semana no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, e reposta esta quinta-feira no A22, em Gaia, onde fica até ao próximo dia 18 (de quarta a domingo, sempre às 21h46, “a hora-fétiche da Palmilha”), a nova peça da companhia pode querer traduzir o lugar a que chegámos: uma lixeira dificilmente navegável (bidões da BP, baldes de tinta, velhos colchões, e uma quantidade desumana de garrafas de água) perante a qual é normal que mesmo picaretas falantes como os rapazes da Palmilha Dentada, dramaturgo residente incluído, fiquem sem palavras. Ou então não: “A ideia de um espectáculo sem texto não foi o lugar a que chegámos, foi o lugar de que partimos. Há muito tempo que queríamos suspender a linguagem falada para experimentar, para testar outras possibilidades. Para nós é importante que o público nunca saiba o que vai ver quando vai ver um espectáculo da Palmilha”, diz ao PÚBLICO Ricardo Alves, que escreveu e encenou Os Observadores de Pássaros.

Canalizar toda a furiosa, para não dizer torrencial, energia verbal da companhia para um espectáculo em que nenhuma das quatro personagens diz o que quer que seja foi, admite Ricardo Alves, “um quebra-cabeças técnico, mas sobretudo artístico”, até porque a Palmilha evitou deliberadamente recorrer aos truques habituais do clown ou da mímica. Também não se tratou apenas de traduzir os carismáticos gags verbais da companhia para outra língua, a que se fala com o corpo, mas verdadeiramente de “inventar uma outra maneira de falar”, sem prescindir das muitas vírgulas que os textos da Palmilha costumam ter e que “é difícil afinar sem a ferramenta útil das palavras”.

E “fala-se muito” aqui, não só de pássaros em vias de extinção e dos destroços, materiais e morais, que o capitalismo vai deixando pelo caminho, mas também sobre isto de simular a normalidade quando a normalidade já se tornou impossível. E, porque estamos no Porto, sobre gaivotas: “Em muitos sentidos, o espectáculo pode ser uma metáfora de Portugal, mas também achamos que pode ser uma metáfora mais global. Fomos levados a julgar que a Natureza já estava definitivamente colonizada e de repente as gaivotas tornam-se carnívoras, vemo-las a atacarem pombos, gatos, pessoas. Por causa do nosso lixo, ou seja: por nossa causa.”

É outra palavra obrigatória: “Vivemos numa época de causas – ter uma causa é fácil, é só pôr um like no Facebook. Até porque um dos requisitos do novo voluntariado é ser visto. Mas novos ou velhos os militantes tendem a ser uns chatos, porque mais cedo ou mais tarde começam a dividir o mundo entre quem come glúten e quem não come glúten, entre quem se interessa por política ou quem não se interessa por política.”

Os militantes de Ricardo Alves dividem o mundo entre quem salva pássaros e quem não salva pássaros, o que também não é assim tão pacífico para o dramaturgo e encenador da Palmilha (“Somos intolerantes quando se trata de impedir o Terceiro Mundo de destruir as suas florestas para sobreviver, mas nós já destruímos as nossas – a Europa está toda domada e destruída, é quase uma horta”), mas pelo menos é uma saída possível para a lixeira.

Ou para o que o espectador quiser ver nela: “Na Palmilha gostamos muito de fazer metáforas brancas. A lixeira pode ser este sítio em que perdemos completamente a noção do que é normal, do que é aceitável, do que podemos permitir que aconteça e em que aos poucos vamos ficando imunes a tudo menos às grandes atrocidades (contra essas, claro, protestamos no Facebook), mas também pode ser exactamente o oposto.” Para eles também é importante nunca saber o que o público vê quando vê um espectáculo da Palmilha. 

Sugerir correcção
Comentar