Portugal invisível e o medo do abismo

Esta campanha eleitoral desafia muitos padrões criados e a culpa é do sentimento mais poderoso presente na pré-campanha: o medo.

Nos estados totalitários o status quo é mantido através do medo das represálias, mas nas democracias o status quo também pode ser mantido através do medo, como, por exemplo, na reeleição de George W. Bush nos EUA.

Nas democracias esse tipo de medo é o medo de deixar-se cair num qualquer abismo, que pode ser produto da ameaça do regresso do terrorismo aos EUA ou, no caso português, do medo do regresso ao abismo da bancarrota. Se quisermos ser mais directos, na campanha eleitoral de 2004 nos EUA criou-se o medo do regresso dos ataques de Bin Laden e em Portugal em 2015 criou-se o medo do mito do regresso de Sócrates.

Há alguns dias dei uma entrevista a uma jornalista da France Culture. A conversa iniciou-se com a pergunta "Por que é que Portugal se tornou invisível para a Europa?" e terminou connosco a perguntarmo-nos se o argumento principal da entrevista poderia ser que "a escolha eleitoral de 4 de Outubro deveria ser entre ganhar tempo ou resolver problemas".

Por que é que quem chega a Portugal acha que o país se tornou invisível para fora? E por que é que isso nos interessa? Em primeiro lugar porque a narrativa estrangeira sobre Portugal é a de que hoje Portugal não é um problema na zona euro. Acima de tudo acha-se que não somos um país problema porque ninguém ouve falar de nós.

Mas porque não se fala de Portugal? Porque os problemas estão todos resolvidos? Não, pois nós sabemos que os problemas não estão resolvidos, inclusive porque o Governo, a oposição, o FMI e a UE partilham a concordância sobre os valores oficiais da percentagem da nossa dívida no PIB.

Não se fala de Portugal porque nos tornámos invisíveis ao exterior pela nossa própria acção e omissão. Essa invisibilidade iniciou-se no auge da crise da dívida quando os políticos portugueses perceberam que falar sobre a dívida, ou as suas causas, era igual a ver taxas da dívida pública a subir.Mesmo, alguns anos mais tarde, quando chegaram os programas de "quantitative easing" do BCE, afastando o perigo da subida das taxas da dívida, nada mudou nessa invisibilidade. Pois, então já era tarde, a omissão do comentário público político já se havia tornado a norma e confundira-se com uma ideia distorcida de "postura de Estado".

Por sua vez, durante os diferentes momentos de pico da crise grega do euro, Portugal tentou sempre dar mais um passo na direcção da invisibilidade usando todos os argumentos e práticas possíveis para fazer valer a ideia de que éramos diferentes, em particular, da Grécia e dos gregos.

Por todas essas razões, a invisibilidade dos problemas portugueses adquiriu nestes últimos anos proporções exponenciais, já que essas novas propensões políticas para a invisibilidade vieram juntar-se à normalidade dos últimos 20 anos e que consiste em usar na governação jogos de sombras e de leitura criativa de números e taxas para "resolver" problemas.À pergunta "e então não foi positivo os nossos problemas terem-se tornado invisíveis?" podemos responder que sim, certamente, permitiu comprar tempo mas resolveu pouco.

Para além disso, teve uma consequência muito mais grave no estado de espírito colectivo dos portugueses: o medo do abismo ou que os nossos problemas possam a qualquer momento ser descobertos, revelados ou reavivados.

A combinação da invisibilidade de Portugal na Europa com o distanciamento face ao gregos, junto com a prática política do "ir mais além do que a troika" num muito curto espaço de tempo, criaram as condições para uma percepção colectiva de estado de emergência permanente face a "bancarrota" no qual a maioria de nós pensou ficar a viver durante três anos.

Um quotidiano em emergência permanente equivaleu a deixarmos que o medo do abismo assentasse arraiais entre nós e que, posteriormente, a dúvida metódica sobre se não é melhor nada mudar, para que nada ponha em causa a invisibilidade dos problemas, germinasse em Portugal.No fim de contas, por via das opções políticas, aparentemente, inflexíveis, dos silêncios treinados e da subordinação da austeridade portuguesa de 2011-2014 ao calendário eleitoral português de 2015 criámos dois problemas para todos nós.O primeiro problema é, a invisibilidade perante a Europa, o que dificultará em muito a acção governativa, do PS ou do PàF, quando precisarmos de deixar de ser invisíveis para podermos resolver de facto os nossos problemas.O segundo problema é a ideia de que não há outra forma de "gerir isto" e que questionar publicamente isso apenas nos colocará à beira de uma qualquer nova desgraça.Esta lógica de medo do abismo, produto da prática iniciada em 2011, interrompida em 2014 e regressada na retórica de pré-campanha teve como consequência um clima onde é fácil criar receios do futuro colectivo. Porquê? Porque sabemos que os problemas existem "ainda", mas por outro lado, precisamente porque há problemas, a dúvida germina sobre se não pode ser melhor "manter como está para que tudo fique na mesma".Se para os historiadores futuros não haverá dúvida que estes anos foram “anos de ganhar tempo” em Portugal, já para os políticos do presente, tanto no Governo como na oposição, a questão é saber se a política terá força para se impor face ao medo do abismo e iniciar finalmente a resolução dos problemas.O medo do abismo é certamente o que impede que nas sondagens desta campanha se entreveja a clara vitória de um partido ou de outro e, também, o facto de para muitos a opção correcta já não ser escolher um partido ou outro mas sim não ir votar.O medo do abismo criou um sentimento colectivo ingerível que induz a desconfiança face a tudo e a todos e que promove a ingovernabilidade de parlamentos, retirando influência presidencial e concedendo fraca legitimidade aos governos eleitos.Para sair deste clima de medo, implícito e transversal, precisaríamos que se cortasse com a instrumentalização eleitoral do medo, se falasse de verdade sobre os problemas "invisíveis" e sobre a necessidade de traçar as “fronteiras estruturais” que não serão jamais colocadas em causa, em particular, a dignidade do emprego dos jovens, o reforço da classe média e a dignidade dos reformados.Se isso não acontecer nesta última semana de campanha então talvez as vozes que dizem que não vale a pena votar tenham efectivamente razão, pois quem quer que seja o próximo primeiro-ministro e forme governo estará prisioneiro do medo criado ao longo destes anos e dificilmente conseguirá desfazer-se dessa herança para que se deixe de "ganhar tempo" e passemos finalmente a "resolver problemas".

Professor do ISCTE-IUL, em Lisboa, e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH, em Paris

Sugerir correcção
Ler 1 comentários