“São pessoas iguais a mim, que tinham uma vida mais ou menos normal"

Jorge Sá, de 34 anos, e a companheira, Milica, de 38, passaram o mês a ajudar sírios, afegãos e iraquianos, na Sérvia.

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Jorge Sá e Milica são voluntários de uma ONG local chamada CZA DR

Cheguei a Belgrado, à Sérvia, a 10 de Setembro. Vim de férias. A minha companheira, Milica, é daqui. Fomos ver os pais dela e dois ou três dias depois estávamos a repartir bens de primeira necessidade entre as pessoas que passam pela cidade a caminho da União Europeia. Impossível ficar indiferente.

Juntei-me à equipa de voluntários da CZA, uma organização não governamental local, de que a Milica já fazia parte. Duas vezes por dia, um grupo distribui pastas dentífricas, escovas de dentes, gel duche, champô, cuecas, meias, calçado – coisas pequenas; as pessoas estão em viagem, não podem carregar coisas grandes.

Sou enfermeiro há oito anos – tenho experiência de trabalho em São Tomé, no Reino Unido, em Portugal. Não me lembro de me ter emocionado com as pessoas com quem lidei como profissional de saúde, mas emociono-me aqui. São pessoas iguais a mim, que tinham uma vida mais ou menos normal, um trabalho, uma casa, um cão, um gato, sei lá, e que, de um momento para outro, deixaram tudo para trás, fizeram-se ao caminho, quase sem nada, a não ser aquela força – uma força incrível.

Tenho lido o que alguns têm escrito nas redes sociais. Há gente solidária e gente que não percebe o que está a acontecer, que não percebe que estas são pessoas que lutam pela vida delas, pela vida dos filhos delas quando os têm, e esbarram em obstáculos. Há um país que tem o exército à espera delas. Há um país que primeiro diz que deixa passar e depois diz que não. Há países que discutem se os acolhem ou não.

Tenho ido a duas áreas, no centro de Belgrado, perto da estação de camionetas. Não são campos de refugiados no sentido clássico. É um parque com relva e árvores e outro com chão de alcatrão, que por norma é usado para feiras. As pessoas chegam aqui de camioneta e ficam umas horas, uma noite, à espera de uma mensagem, de uma chamada, de um sinal qualquer, e voltam a partir de camioneta.

Não são todos sírios. Tenho conhecido pessoas oriundas da Síria, mas também do Afeganistão e do Iraque. Não falo árabe, curdo nem pastó. Falo inglês, gesticulo. Umas pessoas falam inglês, outras não. Recordo-me, por exemplo, de um grupo grande de afegãos, seriam uns 20 ou 25, só com um elemento que falava inglês. Eu falava com ele e ele traduzia para os outros e vice-versa. Nem todos querem falar. Tem de se dar espaço. Nem sempre dá tempo. É tudo mais ou menos rápido. Pergunto se precisam de alguma coisa, como está a correr, de onde vêm, para onde querem ir, se sabem para onde querem ir.

Quando a Hungria decidiu erguer muros de arame farpado na fronteira com a Sérvia e a Croácia anunciou que deixaria toda a gente passar, tentámos dizer isso às pessoas, aconselhá-las a mudar a rota. Elas tinham saído dos países de origem há cinco, seis, sete dias. Não sabiam o que estava a acontecer. Estavam às escuras. Dissemos-lhes que não valia a pena irem por lá, que só iam gastar dinheiro, tempo, mas elas insistiam.

A realidade muda de dia para dia, mas as pessoas continuaram a passar por aqui, vindos do Sul, da Grécia, em direcção ao Norte. Alguns não fazem ideia do que é a União Europeia. Não sabem que é uma união económica e política de 28 países. Só sabem que querem ir para “a Europa”. Quase todos querem chegar à Alemanha. Não sei se é pelo discurso da chanceler alemã, Angela Merkel, se pelo efeito de multidão.

Não sei quantas pessoas estão aqui agora. Com tanta gente, a relva desapareceu do parque relvado. Ficou terra. Tem estado sol. No primeiro dia que vim ajudar tinha chovido. Era um lamaçal. O parque alcatroado tem um parque de estacionamento com dois pisos. As pessoas ocuparam o piso inferior.

O estado sérvio tenta ser prestável. Há sempre água potável. Instalaram casas de banho portáteis num lado e noutro. Funcionários públicos limpam tudo várias vezes por dia. Há sempre uma equipa médica a trabalhar. Há sempre polícia. Os guardas não têm uma postura agressiva. Não sei o que dizem. Não falo servo-croata. Só posso avaliar a linguagem corporal. Sinto que o ambiente não é tenso.

Não há muito para distribuir. Quase tudo o que aqui chega é doado por sérvios e os sérvios não têm muito para doar. Há uns dias chegou uma carinha da Cruz Vermelha com donativos de uma escola da Bósnia. Chegaram a tempo do nosso turno da noite. Estivemos a distribuir tudo o que eles trouxeram.

Volto para Portugal na próxima terça-feira, dia 29 de Setembro. Quando chegar ao Porto, vou logo organizar uma recolha. Vou começar pelo círculo de amigos. Quero entrar em contacto com pessoas que já fizeram isto, Caravana Aylan Kurdi, e com outras que não fizeram mas querem fazer (jorgyte@gmail.com). Falta tudo aqui. Temos de nos mexer. Parece que é uma coisa muito distante, que passa nas televisões, com pessoas estranhas, mas não é, são pessoas como nós, à entrada da União Europeia.

A minha companheira continuará a ajudar. Ela mora aqui. Conhecemo-nos em Budapeste, numa formação sobre hepatite C. Tentamos viver em Portugal, mas não havia trabalho para ela. Estivemos em Londres, mas não éramos felizes. Era um dia-a-dia sempre igual. O custo de vida é elevado. Tínhamos de morar nos subúrbios. Passávamos 12 horas por dia a trabalhar e duas ou três em transportes.

Numas férias, em Portugal, vi uma exposição sobre assentamentos humanos e entusiasmei-me. Tínhamos de mudar de vida outra vez. Ela está em Belgrado a fazer o mestrado em serviço social e eu no Porto a fazer um mestrado em arquitectura e a trabalhar numa empresa de ensaios clínicos. Não parece haver muita coerência no meu percurso profissional, mas há: a vontade de trabalhar com quem está à margem.

Testemunho recolhido por Ana Cristina Pereira

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