Que lições extrair do ébola para a saúde em África?

A resposta internacional deveria ter aprendido com os erros cometidos num passado não muito distante.

O devastador surto do vírus ébola teve início há cerca de um ano e meio em países da África Ocidental. Os primeiros casos ocorreram em março de 2014, na Guiné Conacri e rapidamente a epidemia se espalhou para países vizinhos – Libéria, Serra Leoa, Nigéria e Senegal. Um ano após a transmissão generalizada da doença por vírus ébola (DVE) (foram reportados cerca de 24 000 casos, confirmados e suspeitos, e mais de 10 000 mortes), a maioria dos países está agora livre da epidemia, mas as consequências de intervenções tardias e não planeadas estão a manifestar-se.

Em apenas cinco meses, o maior surto de DVE alguma vez visto derrubou os fracos sistemas de saúde daqueles países africanos e, embora tarde, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o surto como uma emergência de saúde pública de preocupação internacional. Uma resposta internacional heterogénea e, por vezes, fragmentada começou a manifestar-se e um grande número de organizações não-governamentais (ONG) nacionais e internacionais começou a responder ao surto sem uma coordenação clara.

A epidemia afetou de forma direta e indireta os serviços de cuidados de saúde primários em todos os países envolvidos. Na Serra Leoa, a maioria dos centros de saúde depressa ficaram inativos, devido ao reduzido número de profissionais de saúde, mas também à diminuição inesperada de pacientes, uma vez que os indivíduos começaram a evitar deslocar-se a serviços de saúde por medo de serem colocados em quarentena e pelo estigma associado à doença.

Na Serra Leoa, a implementação de planos de contingência da epidemia do ébola conduziu à inativação de muitas unidades de cuidados de saúde primários, sendo os seus trabalhadores envolvidos direta ou indiretamente em atividades relacionadas com o Ébola. Isto levou a que cuidados básicos como os pré-natais ou de vacinação fossem interrompidos durante dias. Esta situação fez com que, numa determinada fase do surto de DVE, os pacientes começassem a recorrer a Centros de Tratamento de Ébola (CTEs) para procurar cuidados de saúde primários, uma vez que os habituais centros de saúde não conseguiam dar resposta às necessidades básicas da população devido à falta de medicamentos e de equipamentos médicos, enquanto os CTEs estavam muito bem abastecidos. Numa situação preexistente de má prestação de serviços, os CTEs eram vistos pela população como uma porta de entrada para cuidados de saúde decentes, o que contribuiu para a redução da procura de cuidados de saúde primários tradicionais.

A experiência do passado tem-nos mostrado que uma situação de emergência complexa, tal como a do recente surto de ébola, vai ter sempre um impacto sistémico nos sistemas de saúde, nos seus recursos humanos e nos seus suprimentos. Contudo, no caso da intervenção para fazer face à epidemia de ébola assistimos a uma estratégia vertical concertada focada nos ‘pilares’ da vigilância, enterros em condições de segurança, mobilização social, gestão de caso, logística, comunicação, proteção de crianças e coordenação – que era inerentemente inadequada para neutralizar o choque sistémico provocado pela DVE. Embora seja conhecido o efeito perverso da adoção de estratégias verticais para lidar com os problemas de saúde horizontais a todo o sistema, as agências de ajuda internacional desenvolveram a sua intervenção focada nestas estratégias ignorando o impacto transversal do surto. A resposta internacional deveria ter aprendido com os erros cometidos num passado não muito distante.

Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade NOVA de Lisboa

 

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