Por que é que todas as cidades têm nomes indígenas e Beja não?

Até ao final dos anos 80, as teses dos investigadores defendiam que a primeira povoação a ser erguida na colina que hoje acolhe a capital do Baixo Alentejo teria sido fundada por Júlio César. Hoje é indiscutível que o espaço teve ocupação pré-romana. Falta confirmar o nome desse povoado.

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Para muitos, as memórias do antigo regime "só irão desaparecer no dia em que morrerem" Foto: Pedro Martinho/arquivo

É um dado adquirido que a fundação das principais cidades do país teve na sua origem um nome indígena. No texto “Enigmas da cidade de Beja” inserido no livro O Sudoeste Peninsular entre Roma e o Islão, recentemente apresentado em Beja, o arqueólogo Jorge de Alarcão explica o facto com dois exemplos: “Lisboa recebeu o cognome de Felicitas Iulia mas conservou o nome antigo: Olisipo. Évora teve o epíteto de Liberalitas Iulia mas manteve a designação indígena: Ebora. Se havia uma povoação pré-romana em Beja, tinha um nome: por que razão, então, não foi mantido esse nome indígena?” interroga-se o arqueólogo.

Se a existência de uma povoação indígena na origem de Beja é hoje indiscutível, permanece o problema de se saber que nome teve, e por que razão os romanos não o mantiveram. É uma questão que remonta ao século XVI. Desde então, as informaçõesi que testemunham a ocupação humana da única elevação de terreno que emerge em dezenas de quilómetros da planície envolvente antes do período romano sucedem-se, sem que se chegasse a uma conclusão. Até que no início dos anos 80 do século passado se verificou uma evolução no conhecimento sobre a origem da cidade alentejana.

Pensava-se, então, que a capital da colónia Pax Iulia tivera fundação romana, mas as escavações realizadas pelos arqueólogos Susana Correia e José Carlos Oliveira na Rua do Sembrano, no centro histórico de Beja, forneceram os primeiros dados “inequívocos” — restos de uma muralha — da existência de um povoado datado da II Idade do Ferro.  

Também o arqueólogo José d’Encarnação admitia, em Sociedade e cultura em Pax Iulia, através da epígrafia (um estudo global das inscrições romanas achadas na cidade alentejana, datado de 1984), a “existência de uma população pré-romana, não apenas porque uma inscrição (mencionada por frei Manuel Arrais, no século XVI) era susceptível de se interpretar como referindo dois senados, um indígena e outro romano, mas também porque a onomástica dava conta de uma forte simbiose” entre as duas comunidades.

Mais tarde, as escavações realizadas pela arqueóloga Conceição Lopes no castelo de Beja e no logradouro do Conservatório Regional do Baixo Alentejo, que tiveram início nos anos 90 e ainda prosseguem, conduziram à descoberta do fórum romano em 2012. Os dados estatigráficos e arqueológicos recolhidos vieram reforçar os vestígios dessa ocupação. Foram “recuperados vestígios que datam do século VII a.C” adiantou ao PÚBLICO a arqueóloga, sublinhando a descoberta de uma inscrição “onde se supõe poder ler a existência de duas assembleias”. Uma “hipótese que ganha força” à medida que a pesquisa prossegue e se aprofunda na designada “zona monumental”, onde foram descobertas as fundações de um templo romano e de edifícios de razoáveis dimensões do período pré-romano.  

Aliás, os testemunhos de autores clássicos gregos e romanos como Estrabão ou Ptolomeu avançam a hipótese de Beja ter tido na sua génese o nome céltico de Conistorgis. O vocábulo seria formado do radical Conis “colina” e do sufixo Orgis ou Urgis que significa “sem água”, descreve Manuel Joaquim Delgado, membro do Instituto Português de Arqueologia no Ensaio Monográfico acerca de Beja, publicado em 1973. 

No final do século XVIII, a propósito da fundação de Beja, Félix Caetano da Silva escrevia: “Os maiores curifeus da literatura assentam todos por infalível a suposição de que [Beja] foi fundada pelos antiquíssimos Celtas. Eu também segundo o parecer de homens tão doutos, não dou outros fundadores à mesma cidade”.

Frei Manuel do Cenáculo, bispo de Beja e arcebispo de Évora, no manuscrito Sisnando Mártir e Beja sua Pátria, datado de 1800, acrescenta um pormenor: “no tempo anterior a Júlio César, Beja tinha o nome de Ges, de origem fenícia”.

Delgado diz ser “crível que a cidade de Beja fosse fundada pelos celtas” e reporta essa fundação a 759 a.C, presumindo que os topónimos Ges e Conistorgis teriam sido “os primeiros nomes de baptismo. Primeiro Ges de origem fenício/celta e depois Conistorgis de proveniência céltica”. “Admitindo este étimo, Conistorgis seria colina sem água. Beja localiza-se numa elevação de terreno com 300 metros de altura, facto que oferecia inigualáveis vantagens por estar situada perto de importantes reservas minerais e do rio Guadiana, ligação natural com o norte de África.

Cenáculo reforça: “As gentes de Ges e Conistorgis, obsequiosas a Julio César, merecer-lhe-ão a glória de nelas pôr o testemunho perpétuo de paz e amizade estabelecida, após luta que prevaleceu cerca de 300 anos entre Lusitanos e Romanos, concedendo chamar-lhe Pax Iulia.”

O mouro Ahmede Arrazi, no século X, referiu-se a Beja nos seguintes termos: “Júlio César veio a esta cidade. Foi ele que lhe deu o nome de Beja que, no falar dos infiéis, significa paz”, destaca Conceição Lopes.

Todavia, as teses contemporâneas refutam a atribuição do nome Ges e Conistorgis à fundação de Beja. Alarcão não crê que a cidade “tenha sido a famosa Conistorgis das fontes grego-latinas”. Conceição Lopes, que desde 1997 desenvolve intensa actividade arqueológica na área onde descobriu o fórum romano de Beja, salienta que ainda não informação suficiente sobre aa ocupação pré-romana na capital do Baixo Alentejo.

De concreto apenas se sabe que Pax Iulia teve fundação romana, uma decisão que tomou “certamente em conta as gentes que a habitavam e que ocupavam os restantes povoados situados no território em redor” observa Conceição Lopes.
 

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