O alerta das jornadas do património

Urge mobilizar recursos, realizar inventários fidedignos e estudos credíveis e envolver todos.

Tenho pena que nos debates europeus sobre as saídas da crise se fale tão pouco de Cultura, de Educação e de Ciência. Muitos pensam falsamente que se trata de temas secundários, no entanto falamos do cerne da inovação e da criatividade, únicas respostas ao primado ilusório do imediatismo, da vulgaridade, da indiferença e da mediocridade que nos trouxe até onde nos encontramos.

As Jornadas Europeias do Património de 2015 realizam-se com um pano de fundo dramático – o drama dos refugiados, a prevalência dos egoísmos nacionais, a incapacidade de encontrar respostas comuns que defendam a justiça e a humanidade, bem como as destruições absurdas de bens do património comum, como temos assistido em Palmyra. Como poderemos falar do Património Cultural e da sua defesa se não começarmos por cuidar das pessoas? Julien Green disse um dia que “ignorar o passado é encurtar o futuro” – e a verdade é que na tragédia humanitária a que assistimos falta consciência de passado e de presente.

A noção dinâmica de Património Cultural obriga à tomada de consciência de que são as pessoas que estão em causa e que a Humanidade está ameaçada quer com as mortes dos refugiados, quer com as destruições das marcas dos nossos antepassados. Estamos perante a noção indivisível de dignidade humana. O nosso Alexandre Herculano dizia: “Nossos pais destruíram por ignorância e ainda mais por desleixo: destruíram, digamos assim, negativamente; nós destruímos por ideias, ou falsas ou exageradas. Destruímos ativamente, destruímos porque a destruição é uma vertigem desta época. Eu ficaria feliz se pudesse, ao menos, salvar uma pedra, só que fosse, das mãos dos modernos hunos”. O programa era e é simples: não destruir ou deixar estragar o que existe, restaurar o que tem valor, divulgar, conservar, tornar acessível… Investir não é lançar dinheiro sobre os problemas – é escolher o que permite preservar com os meios disponíveis e da melhor maneira o que tem valor.

Nuno Bragança disse um dia: “A relação dos portugueses com Portugal é muito estranha. Estão todos de acordo em dizer mal de Portugal – e isto é uma constante que já vem de há muitos anos -, todos recusam um Portugal que obviamente existe porque eles são como são. As pessoas em Portugal têm a tendência para culpar os outros de defeitos que elas próprias também têm” (“Raiz e Utopia”, nº 3-4). E em “Direta” afirmava ainda: “O passado de uma nação é como o passado de uma pessoa; quanto mais remoto ele é, mais importante pode ser. Só quando uma pessoa – ou uma nação – se conhece a si própria, se pode assumir, e então escolher”. Interessará, por isso, nessa relação entre passado, presente e futuro, segundo o escritor, “encontrar o passado que está presente no presente”. Falar de património cultural é isto mesmo: ter consciência de que a memória viva do que recebemos da História exige o respeito pela responsabilidade que temos de fazer da criatividade e da inovação o enriquecimento do que recebemos e legamos a quem nos sucede. A crise, cujos efeitos sofremos, deve-se ao predomínio da ilusão – em vez da capacidade de criar valor.

Identidade de várias identidades e de várias culturas, a Europa tem de recusar o egoísmo e a irrelevância que têm prevalecido. Por exemplo, “se, como é inquestionável, uma cultura nacional – ou regional – se exprime pela língua, é indispensável assegurar que as línguas serão protegidas e estimuladas através do ensino escolar desde o nível básico, da tradução, da edição, da legendagem, da dobragem, da produção audiovisual e multimédia” - como disse Helena Vaz da Silva. No entanto, para que a diversidade cultural seja preservada, é indispensável que o respeito pelas várias línguas seja garantido plenamente, sob pena de se criarem focos de tensão cultural e política. Estamos a falar de educação, de informação e de comunicação em todos os seus aspetos. Não se salvaguarda a cultura defendendo, por princípio, indiscriminadamente todas as culturas. Defende-se a cultura procurando definir medidas para cada situação e pondo-as em prática no tempo próprio. Torna-se necessário trabalhar em sólidas bases. A política do património cultural, centrada na integração, no conhecimento e na ação, deve ser articulada, como fator de coesão territorial, de integração social e de desenvolvimento sustentável, dentro das fronteiras e para além das fronteiras. E urge assumir um conceito dinâmico de fronteira, como um fator de aproximação e não de separação, como ensinava Jacek Wosniakowski. Daí a importância da criação de um quadro que permita a convergência dos ordenamentos jurídicos, de redes de bancos de dados, de sistemas de arquivos compatíveis, de catálogos partilhados, do uso de várias línguas, do desenvolvimento de itinerários culturais e da coprodução de multimédia sobre a história e o património partilhados. As Jornadas Europeias do Património põem a tónica na defesa e salvaguarda dos marcos da cultura, materiais e imateriais – os monumentos, os arquivos, as paisagens, os costumes, as tradições. Tudo obriga a deveres e responsabilidades dos cidadãos. Este ano o tema “Património Industrial e Técnico” das JEP leva-nos à consideração do diálogo entre a tradição e a modernidade, entre o artesanato e a tecnologia, numa perspetiva em que não basta a lógica da conservação, devendo entender-se a defesa do património cultural como fator ativo de desenvolvimento. A Convenção de Faro do Conselho da Europa (24.10.2005), cujos dez anos comemoraremos em breve na capital algarvia com a Universidade, abre caminhos que têm de ser seriamente desenvolvidos, articulando a defesa do património e a consideração inteligente da criação contemporânea – numa lógica de enriquecimento mútuo. Urge mobilizar recursos, realizar inventários fidedignos e estudos credíveis e envolver todos. Os Estados, a sociedade civil e a comunidade internacional têm de partilhar responsabilidades. Eis o alerta!

Presidente do Centro Nacional de Cultura. O CNC teve a coordenação geral das Jornadas Europeias do Património, do Conselho da Europa, entre 2001 e 2005

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