Todos atrás do saxofone de Mette Rasmussen

Saxofonista de descoberta urgente e obrigatória, a dinamarquesa Mette Rasmussen apresenta-se em Portugal numa curta digressão a solo. Ouvidos virados para Guimarães, Lisboa e Paredes.

Fotogaleria
A espantosa qualidade de Rasmussen assenta sobretudo numa subtil exploração de texturas sonoras Peter Gannushkin
Fotogaleria
Mette Rasmussen Peter Gannushkin

Mette Rasmussen nasceu em Skive e cresceu no interior da Dinamarca, numa região onde a música praticamente não chegava. Ninguém tocava à sua volta e nas escolas que frequentou o horizonte de quaisquer actividades afundava-se nos limites do parque desportivo.

Por alguma razão que lhe é inexplicável, desde cedo identificou sem dificuldade uma fortíssima atracção pela música e não foi preciso perder muito tempo com aulas de piano porque assim que encontrou uma escola na região, ouviu um saxofone e percebeu nele o seu futuro. “Quando se toca saxofone”, justifica ao PÚBLICO, “todo o som vem do nosso corpo, está muito ligado a nós fisicamente. Num piano pressionamos as teclas, é algo que se consegue ver a acontecer; o saxofone, como eu o sinto, é mesmo uma extensão de mim mesma.”

Essa primeira impressão foi tão forte que, passados apenas dois anos, quando finalmente conseguiu levar um saxofone para casa emprestado pela escola, antes sequer de emitir o seu primeiro som, já sabia que naquele momento começava verdadeiramente a sua vida na música. “Lembro-me bem de lhe pegar pela primeira vez – do cheiro e do que senti na altura”, diz, admitindo que não tem senão uma resposta emocional para justificar a sua escolha pelo saxofone de que é hoje uma das intérpretes mais entusiasmantes em território europeu – a comprovar sexta-feira no Convívio Bar (Guimarães), sábado na Culturgest (Lisboa) e domingo na Sociedade Musical União Paredense (SMUP), na Parede.

É possível que a inclinação da jovem saxofonista para sonoridades pouco convencionais tenha sido moldada, de alguma maneira, pelo escape que encontrou para a escassez de referências a que tinha acesso naqueles primeiros anos. Ao mesmo tempo que ia tentando deitar a mão a discos que lhe mostrassem os caminhos possíveis que podia percorrer no saxofone, descobriu uma série de entrevistas de Albert Ayler (músico com um som colossal que integrou a linha da frente do free jazz) em que este partilhava considerações sobre a música que fazia. Mette ouviu-as repetidas vezes, com a mesma dedicação que poderia dedicar a uma obra seminal do reportório jazzístico. “Ouvi-lo tocou-me aqui dentro”, conta. “Percebi o que ele me estava a dizer sem o ter alguma vez conhecido. E como não estava em contacto directo com ninguém que fizesse esse tipo de música nesse período, foi importante sentir-me inspirada e estabelecer esse tipo de ligação com alguém.”

Seria essa inspiração a servir-lhe de candeia durante os anos seguintes – ao mudar-se para a Noruega, cativada por uma intensa cena de música improvisada local – e a enformar, em parte, a sonoridade que transportou até ao Trio Riot (partilhado com Sam Andreae e David Meier), um trio de jazz com assumida alma punk sediado em Londres. Foi a primeira formação a que se entregou de forma mais duradoura, mas seria o seu duo com o baterista-maravilha Chris Corsano, registado em All the Ghosts at Once, álbum lançado já este ano pela Relative Pitch, a fazer de Rasmussen um nome emergente no jazz europeu a exigir atenção imediata. Não por acaso, aliás, a saxofonista apresentou-se já este em 2015 em Portugal, no festival Jazz em Agosto, integrando a explosiva Fire! Orchestra de Mats Gustafsson.

A força da subtileza

Comparada por vezes com Gustafsson, Mette Rasmussen não partilha, no entanto, as características vulcânicas do sueco, espécie de cuspidor de fogo com um saxofone nas mãos. A espantosa qualidade de Rasmussen assenta sobretudo numa subtil exploração de texturas sonoras, certamente em evidência durante a curta digressão portuguesa (que passou já por Coimbra e Guimarães) em que se apresenta a solo. Essa tendência natural para a laboração do som encontra um reflexo óbvio na sua confissão ao PÚBLICO de que quase tão importante para a sua criatividade quanto a escuta de discos pode ser a “musicalidade muito particular” produzida por um elevador para bicicletas (semelhante aos das pistas de ski) que ouve sempre que abre as janelas da sua casa, próxima de uma rampa de bicicletas única no mundo.

É também essa atenção ao pormenor e à transformação de um fraseado através da repetição ou da mutação progressiva de um dado som que a leva a afirmar que prefere formações mais pequenas (solo, duos ou trios) em que a sua música possa apresentar-se “um pouco mais despida”. Há, de facto, uma exposição procurada e explorada na abordagem do saxofone por Mette Rasmussen, uma espécie de abertura à intimidade que ela sublinha pela forma como encara os concertos a solo. Depois das primeiras experiências, em que se sentiu perdida por não conseguir perceber que forma de comunicação lhe era possível encetar sozinha em palco, percebeu que a sua presença não poderia nunca corresponder a um monólogo: “Estou a sós com o público e o concerto é uma tentativa de chegar às pessoas, tendo-me apenas a mim. Tem de se trabalhar muito a ler os sinais do público, mas quando se sente que a sala se concentra e nos segue é um sentimento incrível, porque alcança-se algo nesta massa de pessoas que não estava lá inicialmente.”

Qual flautista de Hamelin, é isso que Mette Rasmussen tenta fazer em concerto: tocar até enganchar o público e levá-lo depois consigo até nunca se sabe bem onde.

 

Sugerir correcção
Comentar