Devbhumi

O que será mais importante numa revolução? A alteração da estrutura de propriedade ou a mudança de mentalidade?

A miséria existe sob muitas formas. Há a miséria material. Há a intelectual. Pode existir miséria nas relações sociais. E, apesar de muitos a negarem, há também a miséria moral. Qual é a mais miserável?

O Uttarakhand, um estado no norte da Índia, nos Himalaias, é também conhecido como Devbhumi, literalmente, o País dos Deuses. A paisagem montanhosa e arborizada é magnífica, a urbana é deprimentemente pobre e suja. O grosso da população é constituído por castas baixas, “os vencidos” na designação usada, até há bem pouco, na língua local. Sem terra nem capital, e ainda por cima analfabetos, viveram durante séculos na dependência dos brahmins, a casta dos proprietários, endinheirados e intelectuais. Os seus reis e caciques eram mais que os representantes dos deuses, eram alter-egos dos próprios deuses, na sua natureza um dezasseis avos divinos, no restante, humanos.

Curiosamente para uma economia agrária, e ainda por cima com uma diferença tão marcante entre os que têm tudo e os que não têm nada, no País dos Deuses não havia assalariados: um costume peculiar não permita um homem receber de outro salário em troca de trabalho. No entanto era permitido que se trabalhasse para outrem se fosse para saldar uma dívida. Assim, para subsistir, os vencidos tinham de contrair um empréstimo, ainda que simbólico. Depois trabalhavam como camponeses e cozinheiros, pedreiros e carpinteiros para os seus credores, recebendo, não dinheiro, mas abrigo e alimentação para si e para suas famílias pelo período que levavam a saldar a dívida: uma vida.

O curioso deste arranjo social era de os pobres não precisarem de dinheiro para viver: bastava-lhes terem uma dívida para arranjar trabalho e comida. Só precisavam de dinheiro numa situação: para casar uma filha. O costume imemorável do dote impunha que os vencidos, sempre impecuniosos, tivessem de pedir emprestado a um brahmin a quantia necessária, que nunca era simbólica. Nestes casos era-lhes exigido penhora. À falta de melhor alternativa, era a própria noiva que era penhorada: era esperado que no dia a seguir ao seu casamento se apresentasse na residência do credor. Aí servir-lhe-ia de concubina até que ele se fartasse; era depois enviada para os acampamentos de madeireiros como prostituta até que a obrigação familiar fosse saldada. Recuperava então a sua “liberdade” e regressava para o seu marido para começar a vida familiar, trabalhando ambos para outrem sob um arranjo creditício.

O que choca mais nesta sociedade? As relações laborais? A sistematização da imoralidade sexual? A estrutura financeira primitiva mas cruel e que tudo permeia? A condição feminina? A instituição familiar, com o binómio dote-prostituição para pagar dote? A injustiça social ou a pobreza material? Curiosamente, sociólogos e antropólogos que estudavam a sociedade do País dos Deuses reportavam que não se notava entre a população qualquer sentimento de injustiça e, à parte do esporádico panfleto maoísta afixado numa árvore, não se vislumbrava qualquer movimento de revolta entre os vencidos contra as relações sociais instituídas. Relativistas culturais, as suas conclusões resumiam-se a um “se eles gostam, quem somos nós para julgar?”

Indira Gandhi (1917-1984), no entanto, não era uma relativista cultural: era uma moralista que julgava que esta estrutura social era injusta e indigna de seres humanos. Em 1975, quando primeira-ministra, e durante o período de estado de emergência, fez implementar um conjunto de reformas económicas que, dizia-se, seriam de grande alcance: reforma agrária, dando titulo de propriedade de pequenas parcelas de terra a todas as famílias, distribuição de gado pelos mais pobres, e acesso a crédito bonificado aos mais desfavorecidos. Com a alteração da estrutura de propriedade e libertação dos pobres do domínio dos agiotas locais, Gandhi esperava eliminar a abjeta submissão secular das castas mais baixas.

Também no País dos Deuses estas reformas foram implementadas: os vencidos receberam terras e gados e foram informados que créditos obtidos nalguns dos bancos nas principais cidades seriam bonificados. Uma revolução? Sem dúvida. Mas o que será mais importante numa revolução? A alteração da estrutura de propriedade ou a mudança de mentalidade? A contra revolução não se fez tardar. Quem eram os reacionários? Aos poucos, mas inexoravelmente, os novos proprietários alienaram, voluntariamente e sem necessidade aparente, terras e gados e voltaram ao antigo sistema de devedor-credor. No início dos anos oitenta, uma equipa de antropólogos franceses que estudou o efeito das reformas no País dos Deuses concluía: a reversão à situação anterior permitia ao grosso das castas baixas reavivar um relacionamento social com significado cultural nas suas vidas: na Índia em geral, e no Devbhumi em particular, a vida material é mais uma expressão de um modo de estar relacional que uma fonte de autonomia individual. Voilà.

Qual é a miséria mais miserável?

Professor de Finanças, AESE

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