Vitor Silva Tavares (1937-2015)

Há na postura de Vitor Silva Tavares uma grandeza de carácter que se sobrepôs à sua obra.

Conheci Vitor Silva Tavares há dois anos e meio, quando fui bater à porta do seu subterrâneo na Rua da Emenda, sede mítica da mítica &etc, para com ele conversar sobre João César Monteiro.

Não era uma entrevista formal, mas uma auscultação: eu estava decidido a escrever uma biografia sobre João César e queria saber o que é que ele pensava do assunto e se tinha disponibilidade para falar comigo. O Vitor tinha disponibilidade, claro, e era uma disponibilidade torrencial, com as histórias a empilharem-se em cima umas das outras, atilhadas com anedotas e dichotes, como é próprio de uma geração que cresceu a conversar em cafés, e que não só leu bastante mais do que a minha geração, como, sobretudo, falou e conviveu muito mais do que ela.

Diante de mim, eu tinha um arquivo vivo de quase tudo o que de melhor a cultura lisboeta conseguiu produzir na segunda metade do século XX, e ao fim de poucos minutos já estava arrependidíssimo de não ter levado um gravador para registar aquilo que era suposto ser apenas uma conversa de apresentação. Foi a investigação em torno do João César Monteiro que me levou a Vitor Silva Tavares e, em boa medida, foi Vitor Silva Tavares que me levou ao pequeno mas luxuriante mundo da edição independente portuguesa, onde o livro continua rodeado de uma aura sagrada e permanece um trabalho de artesanato, amoroso e resistente às regras do "mercado", mesmo quando é transaccionado aos sábados entre os alfarrabistas da rua da Anchieta.

Ainda assim, aquilo que mais me fascinava em Vitor Silva Tavares não era o seu trabalho de editor atento, idiossincrático e de princípios inabaláveis, que fez da &etc a editora exemplar que ainda hoje é, nem sequer o homem que enfrentou corajosamente a censura do Estado Novo. Tudo isso são qualidades admiráveis, com certeza, mas em ambos os casos é possível encontrar outros nomes que as partilharam. Contudo, havia um facto muito particular que era para mim surpreendente e desconcertante; um traço de carácter que Vitor Silva Tavares pareceu repartir com mais ninguém: a capacidade que teve para se manter amigo de Luiz Pacheco e de João César Monteiro ao longo de toda uma vida.

Pacheco e João César tinham feitios impossíveis, e as suas vidas são uma longa estrada de amizades crucificadas pelos seus temperamentos; gente que, mais tarde ou mais cedo, acabou por não aguentar e afastar-se. Contudo, nessa terrível lista de amigos caídos, o nome de Vitor Silva Tavares ficou sempre por riscar – e é nesta perseverança que reside o seu mistério. Não sendo ele propriamente o mais manso dos homens, como a integridade do seu percurso bem demonstra, como justificar essa paciência de Job? Que estranha qualidade o fez permanecer sempre ao lado de quem tanto pedia e tão pouco dava em troca?

Não vou fingir que encontrei uma boa resposta para essa pergunta, até porque a longa entrevista sobre João César Monteiro nunca chegou a ser realizada, por minha culpa: a biografia tem vindo a fazer caminho, mas demasiado devagar, como se vê. E no entanto, a atitude de Vitor Silva Tavares perante os mais excêntricos de entre os excêntricos tem sido, desde a minha visita à rua de Emenda, não só um enigma, mas também uma inspiração. Há na sua postura uma grandeza de carácter que se sobrepôs à sua obra, um apagamento assumido de si – até como escritor e poeta – para outros brilharem. E essa é uma forma absolutamente radical de entrega aos outros, em tudo digna do nosso espanto e da nossa admiração. 

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