Mercados: São mesmo os grandes culpados das crises?

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Mercados estiveram no centro do debate durante a crise

A emergência deste silogismo no quadro problemático enunciado no título deste artigo tem a ver com o seu notável paralelismo com um tipo de inferência que na atualidade, muito generalizadamente, se faz relativamente aos mercados financeiros.

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A emergência deste silogismo no quadro problemático enunciado no título deste artigo tem a ver com o seu notável paralelismo com um tipo de inferência que na atualidade, muito generalizadamente, se faz relativamente aos mercados financeiros.

Com efeito, uma rápida análise por alguns títulos de jornais parece indiciar que os mercados financeiros são os grandes responsáveis pela crise política grega, pelo elevado risco de abrandamento da economia chinesa ou pelo baixo crescimento económico na zona euro. Enfim, parece que, passados 2 400 anos, regressamos ao mesmo tipo de falácia de raciocínio denunciada por Isaac Asimov, falácia essa que leva a concluir que o “fator comum” – o Mercado - é horroroso, é maléfico, é perverso. Enfim, o Mercado é o diabo.

Na realidade, os mercados financeiros são uma das mais importantes construções da civilização moderna. Sem eles não teria sido possível atingir níveis de bem-estar como os que temos atualmente. Correspondem a uma infraestrutura central no funcionamento das Economias, uma vez que permitem, nomeadamente, colocar em contacto os agentes que possuem poupanças com aqueles que apresentam necessidades de financiamento.

Utilizando uma linguagem simples, os mercados financeiros são o equivalente ao sistema circulatório no corpo humano. Tal como o sistema circulatório é essencial no transporte dos nutrientes pelo corpo humano, os mercados financeiros são centrais na circulação dos recursos financeiros na Economia.

Por outro lado, e tal como no corpo humano a elevação da temperatura é um fenómeno natural em situação de doença, também nos mercados o aumento da volatilidade - medida sintética de variações nos preços dos ativos -, não é mais nem menos do que o funcionamento natural dos mecanismos de correção.

E neste contexto, pergunta-se: alguém pode culpar o sistema circulatório pelos resultados de uma ingestão excessiva de álcool? Ou então serão os mercados os grandes culpados das crises?

A resposta parece ser claramente negativa.

Assim, e para compreender esta crise financeira, indutora e induzida por uma crise económica sem precedentes, elenca-se um conjunto de pistas que, contudo, não podem ser entendidas como um juízo sobre quaisquer situações concretas.  

Destaca-se, em primeiro lugar, o papel das políticas públicas na crise financeira, ao promover o consumo e o endividamento excessivo dos particulares e do Estado.

Recorde-se a este propósito o papel que a administração Clinton teve na promoção do crédito à habitação às franjas mais desfavorecidas da população – o denominado crédito subprime, ou ainda a adoção, no início dos anos 2000, de políticas monetárias fortemente expansionistas que reduziram significativamente o nível de taxas de juro, originando crescimentos exponenciais nos preços dos ativos reais e financeiros.

Em segundo lugar, salienta-se a dificuldade em encontrar um modelo de supervisão e regulação adaptado a uma realidade onde domina a inovação financeira e a liberdade de movimentos de capitais, que fosse, por um lado, flexível, isto é, dando margem de manobra aos agentes para desenvolverem a atividade num quadro de sã concorrência e, por outro lado, que garantisse tempestivamente a defesa integral dos interesses dos acionistas, credores, depositantes e pequenos investidores.

Fator relevante nesta crise foi também a adoção, por parte das instituições de crédito, de políticas de remuneração dos seus colaboradores baseadas em volume de negócio e não na rendibilidade das operações ajustadas de risco.

Não menos relevante, e alimentado por um endeusamento das distribuições probabilísticas teóricas, destaca-se a crescente complexidade dos produtos financeiros, muitos deles incompreensíveis até para quem os criou, e que fizeram com que o Sr. António, pastor na Pampilhosa da Serra, perdesse todas as suas poupanças porque Mr. Bean, morador em Nova Iorque, resolveu deixar de pagar o empréstimo.

Destacam-se ainda como elemento perturbador do regular funcionamento dos mercados os conflitos de interesses dos analistas financeiros, de algumas instituições financeiras, das empresas de auditoria que, simultaneamente, auditavam e prestavam consultoria e, não menos importante, das agências de rating quando, por um lado, atribuíam elevados ratings a produtos financeiros complexos e, por outro, beneficiavam do facto de uma boa classificação de rating se traduzir em mais produtos colocados nos investidores e, consequentemente, em mais negócio.

A reduzida perceção dos riscos por parte de alguns agentes económicos, resultado da existência de assimetria de informação, associado a um excesso de confiança, contribuíram decisivamente para alimentar a turbulência dos mercados, conduzindo a que os preços dos ativos financeiros se distanciassem claramente dos fundamentais, sendo exemplo paradigmático o facto das dívidas públicas portuguesa e grega terem sido consideradas pelos investidores até 2010 no mesmo patamar de risco da dívida alemã.

Obviamente, e como não poderia deixar de ser, as situações de fraude, potenciadas por conjunturas que, como se diz na gíria futebolística, “beneficiaram o infrator”, contribuíram significativamente para o clima de turbulência que se viveu e ainda vive.

Outro fator determinante para o funcionamento menos adequado dos mercados, prende-se com os modelos de governação das instituições. Com efeito, a adoção, por parte de algumas instituições, de modelos autocráticos de governação, descaracterizando a natureza colegial dos seus órgãos de administração e anulando o saudável contraditório, introduziram perturbações no funcionamento dos mercados, conduzindo, em alguns casos, a efeitos sistémicos ainda não quantificáveis.

Por fim, um último aspeto, que tem de estar presente em todas as atividades humanas, mas que apresenta particular relevância nos mercados financeiros – A Ética. Falamos da Ética da “virtude” na medida em que “o carácter bom de uma pessoa conduz a boas ações”; da Ética “deontológica”, quando se fala em “cumprimento das regras estabelecidas”; e falamos de Ética “consequente” quando “os fins não podem justificar os meios”.

Para finalizar, importaria perceber se todos estes fatores que contribuíram para a complexa situação que enfrentamos nos mercados financeiros, e que reforçam a tese de que o “mau estar físico tem mais a ver com o álcool que ingerimos do que com o sistema circulatório”, são novidade ou eram conhecidos e antecipáveis pela generalidade dos decisores? 

Vargas, no seu livro, “Quem matou Palomino Molero?”, descreve de forma deliciosa a problemática da revelação da verdade. O livro conta a história de um jovem soldado que foi brutalmente torturado e assassinado. Dois polícias - um tenente e um jovem soldado - investigam o crime. Desvendada a história, o velho tenente vira-se para o jovem soldado, afirmando: “Querias desvendar o mistério de Palomino Molero e conseguistes. E vê o que ganhámos. A ti mandaram-te para a Serra, longe de tudo e de todos. A mim para um lugar ainda pior”. O velho tenente, desanimado, conclui afirmando: “Assim se agradecem os bons trabalhos na Guarda Civil…”.

Os tempos que vivemos não se coadunam com o triste final do livro de Vargas.

Na realidade: a situação na Grécia; o rebentamento inevitável da bolha chinesa; as exigências de capital impostas por Basileia III; o equilíbrio instável na União Europeia; o drama social resultante do movimento migratório proveniente da Ásia e de Africa, impõem, mais do que nunca, verdade e transparência nos mercados financeiros.

E o caminho da verdade e transparência nos mercados fica facilitado se todos, e cada um de nós, melhorarmos o conhecimento que temos sobre o seu funcionamento.

Dir-se-ia que a melhor vacina para as crises é a Literacia Financeira.

Na realidade, o regular funcionamento dos mercados obriga a uma cultura financeira muito exigente por parte dos diferentes agentes, que conduza à responsabilização pessoal pela assunção dos respetivos riscos, diminuindo, como acontece em outros ambientes mais evoluídos nesta exigência, a expetativa e a necessidade de intervenção dos órgão de supervisão e dos poderes públicos na atividade concreta dos mercados, evitando-se uma lógica muito cristalizada na Sociedade de “ganhos privados e prejuízos públicos”, ou seja, um indesejável apelo ao intervencionismo.

Autores do livro “Mercados – São Mesmo os Grades Culpados das Crises?”