Todo um mundo à sua espera

Joana de Verona tem um nome que se retém e uma presença que toma conta de qualquer ecrã ou de qualquer palco. Em As Mil e Uma Noites, Volume 2: O Desolado, de Miguel Gomes, em estreia a 24 de Setembro, não há como escapar ao seu magnetismo.

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As mãos enfiadas uma na outra, os pés sem assentarem inteiramente no chão, a cabeça mal se conseguindo manter direita entre os ombros. Diante de uma assistente social, Vânia reclama como pode — envergonhada, humilhada, com uma argumentação frágil e repetitiva — por quaisquer trocados que permitam variar o cabaz que ela e o namorado recebem como ajuda essencial a uma sobrevivência precária. De pouco vale. Do outro lado, Vânia encontra desconfiança, inflexibilidade, escrupuloso cumprimento das regras. Parece uma espiral que nos atira de volta para o ponto de partida: duas pessoas imploram por algo que as traga à tona da dignidade, podendo transportar-nos facilmente para a situação óbvia de um país que pede auxílio a uma instituição. Mas logo a atenção nos devolve para a situação concreta e para o facto de cada colectivo ser formado por indivíduos com nome próprio. No caso, Vânia e Vasco.

Uma vagina ensanguentada, dois corpos estendidos e exaustos numa cama, até que a rapariga se levanta e atravessa nua, com passos titubeantes, o corredor que a leva até à cozinha. Acabou de perder a virgindade e telefona à mãe, uma juíza prestes a dirigir um insólito tribunal popular, para lhe relatar a novidade como um corriqueiro acontecimento do seu dia e para lhe pedir conselhos sobre o bolo a confeccionar com que quer surpreender o homem que a desflorou assim que este acordar. A mãe avisa-a de que não deve passar a responsabilidade do bolo para a empregada — se começa por aí a delegar em outras a responsabilidade pelo seu homem, onde acabará? — e descansa-a quanto ao sexo futuro, que será certamente mais satisfatório à medida que for aprendendo a relaxar o períneo.

Vânia e a filha da juíza são as duas personagem interpretadas por Joana de Verona em As Mil e Uma Noites, Volume 2: O Desolado, segundo tomo da trilogia de Miguel Gomes inspirada nas histórias de Xerazade e na crise financeira e social que se abateu sobre o país desde 2008, que se estreia a 24 de Setembro e foi recém-anunciado como candidato português à nomeação para os Óscares. As duas personagens sugerem a amplitude de registos explorada por Gomes no seu tríptico, vogando entre a imersão na realidade, reagindo a quente às notícias peneiradas por uma equipa de jornalistas em que se inspirou para várias das histórias de As Mil e Uma Noites, e a exploração do absurdo, da absoluta fantasia a caminho do surreal em que alguns dos episódios embarcam.

Quis o acaso que as participações de Joana de Verona nos blocos Os Donos de Dixie e As Lágrimas da Juíza surgissem ambas no mesmo volume, reforçando ainda mais a soberba versatilidade da actriz, convocando o risível e o doloroso com igual assombro, como se nos seus gestos e nas suas palavras encontrássemos, à vez, uma verdade a caminho do absurdo e uma outra verdade em direcção à desesperança. Mas poder-se-ia até ter dado o caso de Joana não chegar sequer a integrar nenhum dos segmentos da obra desmedida que Miguel Gomes estreou no Festival de Cannes. Quando o realizador se cruzou com a actriz nas imediações da Avenida de Roma — o que faz dos dois vizinhos —, convidou-a a participar num “filme híbrido de mistura de documentário e ficção profunda, onírica”, recorda Joana de Verona. Para ela, que tinha investido num curso de realização de documentários nos Ateliers Varan, em Paris, enquanto vivia (e vive) de dar vida a personagens ficcionais, o isco era perfeito.

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Vânia e Vasco (Joana de Verona e Gonçalo Waddington), o casal de toxicodependentes de Os Donos de Dixie, um dos blocos no segundo volume do triptíco de Miguel Gomes cortesia o som & a fúria

Só que não havia certezas. Dado o processo peculiar de rodagem de As Mil e Uma Noites, com um guião que se escrevia em resposta ao que a realidade portuguesa propunha no seu dia-a-dia, a única garantia de Joana era a de que o seu nome fazia parte de uma bolsa de actores que se encontravam de sobreaviso, podendo ser chamados a qualquer momento — uma, duas, três vezes ou até nenhuma — pela produtora O Som & a Fúria para começarem de imediato as filmagens (que se prolongaram por um ano). Joana de Verona ficou assim “obrigada” a uma espécie de termo de identidade e residência: sempre que se ausentasse de Portugal devia informar a produção dos períodos em que não estaria no país. “Como na altura estava a fazer viagens a Paris regularmente”, recorda, “todos os meses avisava que saía. Não sabia quando [seria chamada] nem para que personagem. Era tudo uma grande incógnita.”

Até que, como sempre parece acontecer nestas contas do destino, o telefonema que a convocava para as filmagens de Os Donos de Dixie chegou, precisamente, quando Joana de Verona iniciava, em Paris, os ensaios para 1er Avril, um espectáculo de teatro e dança de Yves-Nöel Genod no Théâtre des Bouffes du Nord. O acordo com o coreógrafo francês era exactamente esse: havia um compromisso prévio e prioritário com Miguel Gomes que a actriz devia respeitar. E assim foi. Recebida a chamada, fez a mala e meteu-se num avião. Adeus, Paris; olá, Santo António dos Cavaleiros.

Em Outubro de 2013, espalhou-se pelos jornais a notícia fatídica do pacto de morte de um casal de 53 e 60 anos, que se suicidou após anos de depressão e alegados problemas de alcoolismo. Os corpos foram descobertos no apartamento onde viviam passadas já duas semanas sobre a sua morte, quando os vizinhos, estranhando a sua ausência, fizeram descer um espelho pela janela do prédio, até alinharem o olhar com a imagem dos dois deitados na cama, em condições que não deixavam dúvidas quanto ao seu estado. Essa descrição é transformada numa das cenas de Os Donos de Dixie, cabendo a Joana de Verona e Gonçalo Waddington o papel do casal amigo a quem, de facto, os dois suicidas entregaram o seu cão.

Dixie é precisamente nome de cão e é a ele que cumpre o papel de ligar vivos e mortos, gente vencida pela dureza da vida e gente a tentar não ser sufocada pelo presente, sem conseguir, no meio daquela selva de prédios, vislumbrar qualquer ponta de futuro. Quando Joana de Verona recebeu o guião e tomou contacto com o casal de toxicodependentes que formaria com Waddington, sabendo que havia uma Vânia e um Vasco de carne e osso (que podem ou não ter estes nomes), perguntou de imediato a Miguel Gomes se poderia conhecê-los. “Não necessariamente fazer-lhes perguntas”, explica à Revista 2, “mas estar presente, queria ouvir como ela fala, percebê-la, vê-la, conhecê-la. O Miguel disse-me que não, não tinha interesse em que os conhecêssemos porque não queria que nos apegássemos a nada em concreto, queria que as personagens fossem criações nossas.”

Se esse contacto com a realidade foi gerido de forma a não escravizar o cinema que dali resultaria, a proximidade à história e ao contexto em que aconteceu era, contudo, crucial. Tanto assim que o apartamento que se vê em O Desolado fica no mesmo prédio onde o suicídio a dois teve lugar. Para a actriz, essa foi uma deixa a que desde logo se podia agarrar. “Gosto muito de trabalhar com o espaço real, ajuda-me muito. E filmando em Santo António dos Cavaleiros todos os dias durante duas semanas, de dia ou de noite, ajudou também a perceber o espírito daquele bairro, a dinâmica das pessoas que moram ali.”

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Por outro lado, a presença dos actores profissionais é, em cada segmento, um enxerto de ficção nesse território do real. Quando Joana de Verona contracena com uma não-actriz no papel de assistente social, no momento em que reivindica um cabaz mais variado, não é a si que cabe a condução da cena, mas antes a resposta improvisada tendo em conta o objectivo por que tem de se bater. “Não são textos estudados entre actores, o que obriga a sair um pouco da zona egocentrada do actor — que é uma coisa que me aborrece um bocado”, confessa. “Foi muito bom estar ali e ouvi-la no momento, estar com ela, dar-lhe o foco e deixá-la gerir a cena.” Takes houve em que Joana reagiu de forma mais exaltada e enervada, mas a interpretação escolhida acabou por recair, sintomaticamente, no take em que a sua resistência se torna mais contida, “mais submissa”.

Estas experiências em que a sua preparação como actriz é limitada e exige uma resposta imediata às situações propostas agradam a Joana de Verona sempre que roçam uma abordagem documental. O caso mais extremo terá acontecido com a rodagem de O Touro, da realizadora brasileira Larissa Figueiredo, que a actriz descreve como “um filme muito antropológico”, exibido no Festival de Locarno em 2014 numa versão longa e estreado oficialmente em Roterdão. Quando Figueiredo se encontrava a pesquisar sobre cultura popular no interior do estado do Maranhão, encantou-se com a lenda de que D. Sebastião, após desaparecer na batalha de Alcácer-Quibir, teria não morrido mas fugido com as suas posses para o litoral maranhense. A realizadora procurou uma actriz portuguesa que fosse largada naquelas terras, relacionando-se de forma virgem com a terra e com a população local de 450 habitantes. Aquilo que então ignorava é que foi em São Luís do Maranhão que, há 25 anos, Joana de Verona nasceu, durante um período em que os pais trabalhavam na região. Foi um encontro “cósmico”, disse-lhe Larissa.

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"Gosto muito de trabalhar com o espaço real. E filmando em Santo António dos Cavaleiros durante duas semanas, de dia ou de noite, ajudou a perceber o espírito daquele bairro" cortesia o som & e a fúria

Foi no regresso ao Brasil, aliás, que Joana se iniciou na representação, quando voltou em 2000 para viver no Rio de Janeiro durante três anos e meio. Fez cursos de teatro com Maria Lúcia Priolli e Andreia Avancíni, pisou pelas primeiras vezes o palco e participou na mini-série da TV Globo Presença de Anita. Quando chegou a Portugal, em 2004, filmou Sonâmbulo, Um Filme de Sombras, de João Trabulo, trabalhou com Bruno Schiappa no Chapitô e integrou o elenco da série juvenil Morangos com Açúcar. Daqui, rapidamente passaria para o cinema de João Botelho e para o teatro de Carlos Avilez, Bruno Bravo e Mónica Calle. A naturalidade com que saltita entre teatro, cinema e televisão faz-se de uma inquietude que será, porventura, consequência do nomadismo dos seus primeiros anos de vida.

Há algo de verdadeiramente febril na forma como vive a profissão e se entrega a vários projectos em simultâneo. Um par de dias na sua pele pode corresponder a uma sequência frenética como esta: “Estive há tempos em Paris a apresentar a curta-metragem francesa Je Suis Présent [de Maxance Germain-Vassilyevitch]. A apresentação foi de manhã e apanhei logo um comboio para Roterdão onde estive umas horas, na estreia d’O Touro. Às três da manhã fui de comboio para Amesterdão, às seis apanhei um voo para Portugal, ao meio-dia estava a gravar a novela [A Única Mulher, na TVI] e nessa noite estava a ensaiar com a Mónica [Calle]. Estava muito cansada, sim, mas sou bastante workaholic, durmo pouco e tenho muita energia. E esta área é tão pouco estável que, às vezes, se pode passar um grande período sem trabalho e, outras vezes, aparecem quatro coisas ao mesmo tempo.”

Claro que nem sempre é assim. E não apenas em períodos de menos trabalho. Joana de Verona sabe que “quando se é protagonista de um filme que ocupa os dias todos, completamente absorvida por aquele universo, se calhar não é necessário fazer outra coisa”. Foi o que aconteceu, por exemplo, com O Touro, outra experiência invulgar em termos de salto para o desconhecido. “Não sabia nada do guião. E estava completamente impedida — um impedimento consentido da minha parte — de o ler. A realizadora nem gostava que saísse sozinha da minha casa e andasse pela ilha porque receava que eu começasse a tirar informações com as pessoas ou criasse relações.” A intenção de Larissa era que Joana reagisse espontaneamente perante as câmaras diante de cada situação. Chegou, por exemplo, a ser vendada para não saber para onde era levada e o que lhe ia acontecer, só foi autorizada a mergulhar duas semanas depois da chegada para que esse momento ficasse registado em filme e ignorava a cena de ciúmes em que se veria metida quando falava com um autóctone (tudo combinado com a realizadora).

Aquilo que lhe era pedido em O Touro era, afinal, a sua total disponibilidade, actriz e personagem coincidentes na descoberta ávida do mundo e das pessoas à sua volta. Mas o rigor extremo de que a sua presença no filme foi alvo levantou-lhe também algumas reservas. “Também gostava de ter participado no processo criativo”, desabafa. “Às vezes estávamos todos a almoçar juntos, depois de almoço eles queriam reunir sobre o plano da tarde ou do dia seguinte e eu tinha de ir embora para não ouvir. Não podia estar presente nas reuniões nem dar ideias. Tinha de ir ao sabor da maré.”

Larissa Figueiredo descobriu Joana de Verona ao ver Como Desenhar Um Círculo Perfeito, filme de Marco Martins, rodado quando a actriz tinha apenas 18 anos e que a catapultou para a primeira linha do cinema português. A história de um amor incestuoso partilhado com o irmão (Rafael Morais) deixaria marcas profundas no seu percurso. E não apenas as nomeações e prémios no Estoril Film Festival, no Rio de Janeiro International Film Festival, nos Globos de Ouro ou no Cineport – Festival de Cinema do Brasil. “Quando se tem a ‘mãe’ Beatriz Batarda aos 18 anos, bebe-se tudo, suga-se tudo, é um privilégio muito grande vê-la de perto porque ela conjuga aquilo que é perfeito um actor conjugar: uma inteligência cénica com uma intuição e uma técnica brutais, tudo em harmonia, e isso é muito bonito de ver e de aprender.”

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A partir do filme, Joana integrou também uma certa família artística reunida em torno de Marco Martins, participando no espectáculo Music Around Circles (com Bernardo Sassetti) e, em 2013, na peça de teatro Rosencrantz e Guildersten Estão Mortos, de Tom Stoppard (com Beatriz Batarda, Gonçalo Waddington, Nuno Lopes…). “[Como Desenhar…] Teve também um impacto muito grande em mim, enquanto actriz e sobretudo enquanto jovem”, acrescenta. “A personagem Sofia, de 16 anos, está a largar a meninice e a tornar-se mulherzinha, a descobrir toda a questão sexual; eu, aos 18 anos, estava a largar toda a adolescência e a avançar para a idade adulta, estávamos ambas em fases diferentes mas em períodos de transição.”

É também neste ponto de transição que encontramos a personagem que Joana de Verona interpreta no segmento As Lágrimas da Juíza, no filme de Miguel Gomes. Para a cena com um “tom algo mole, meio girly e naïf”, diz, ajudou a filmagem entre as três e as seis da madrugada, quando o sono e o cansaço se apoderavam da equipa. Toda a cena acontece com Joana em nu integral, mas não foi essa a verdadeira dificuldade com que se deparou — “cenas de mulheres e homens nus no cinema existem muitas e faz parte”, relativiza. “O que se tem de preparar mais naquela cena é esta coisa de o discurso ser muito absurdo, porque estou a falar de um bolo, de uma virgindade e de não deixar a empregada fazer o bolo senão vai roubar o futuro marido, um discurso pouco realista mas dito de uma forma completamente banal que torna aquilo um bocado cómico.” É um primeiro assomo de choque e absurdo que depois se estende a uma cadeia de crimes desfiados na assembleia popular a que a juíza preside, e em que se transita abruptamente do espaço íntimo para o espaço público.

Apesar desse langor de horas tardias, a cena é dominada pela actriz com um magnetismo e uma solidez espantosos. Se a “vertigem e dificuldade” a atraem no teatro — “é como um salto de pára-quedas em que não se pode voltar atrás, não se pode parar, é um voo e um transe, um êxtase muito grande”, descreve num repente de entusiasmo — e gosta da eficácia na televisão, o cinema desperta-lhe um lado mais melancólico, talvez porque “exige mais uma bolha contemplativa, em que se pode estar duas horas à espera que a luz seja feita ou 20 minutos com o olhar focado num mesmo sítio”. É isso que tem procurado ao lado de mestres como Raoul Ruiz (Mistérios de Lisboa) ou cineastas emergentes como João Salaviza (Rafa), escolhas que faz sempre em função da identificação com realizador, equipa e guião. “Não tem sido uma prioridade ganhar milhões nem ser hiperfamosa e dar 500 autógrafos a cada passo”, diz. “Nunca senti a pressão de ter de ser protagonista numa novela, de aparecer nas revistas, de ter de fazer campanhas publicitárias ou de ser muito conhecida em Portugal. E, como tenho trabalho, isso dá-me a liberdade de escolher.”

Escolher e ser escolhida, é nesse jogo constante que se joga a sua vida. Recentemente, Joana de Verona chegou à derradeira fase do casting para a protagonista da próxima longa-metragem do franco-tunisino Abdellatif Kechiche (A Vida de Adèle, O Segredo de Um Cuscuz), na sequência de um convite que o realizador lhe fez durante um almoço informal em Paris. Depois de uma difícil prova de leitura em francês arcaico, o papel foi entregue a uma outra actriz, tendo ficado em aberto uma eventual participação secundária de Joana no filme de época que Kechiche prepara. Mas é de esperar que as oportunidades, agora que tem agente em Paris, continuem a avolumar-se. Até porque, sempre que puder juntar os seus dois maiores prazeres — a representação e as viagens —, não deixará de aproveitar.

Quando Joana nasceu, o pai apontou aleatoriamente para um mapa-mundo e o dedo caiu sobre a cidade italiana de Verona, completando-lhe o nome de baptismo. Num certo sentido, é esse mesmo gesto que a actriz vai repetindo a cada novo passo, espalhando a mão pelo mundo.

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