13 Passos Socráticos

Depois de martelar 12 vezes, em três televisões simultâneas, para 3, 3 milhões de espectadores, o nome de “Quem-nós-sabemos”, e “Aquele-que-não-pode-ser-nomeado-demasiadas-vezes-pois-ele-se-vira-contra-nós”, Passos Coelho engoliu o azedume da derrota televisiva.

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Aviso: a campanha está a ficar cheia de números atirados ao ar. Em respeito pelos leitores eleitores, começamos com um número fácil de entender: dois.

Foi a pensar em duas frases que Passos Coelho avançou por uma rua de Lisboa cheia de buracos e de repórteres que, a meio, tem um prédio azul-bebé com traços art-déco, um número (33) gravado na alvenaria, uma porta de alumínio brilhante que não se percebe como foi aprovada numa obra original dos anos 30-40 e um polícia que não pode sair dali, coitado. Diz-se que fica em Lisboa, mas pode ser um estúdio na Cinecittá ou em Bollywood. A primeira frase era do próprio candidato Passos Coelho, atirada em directo contra António Costa:

— Eu acho extraordinário que venha fazer a acusação de que há uma mestificação sobre a troika, dizendo que foi o PSD que chamou a troika e que o programa foi negociado pelo PSD. Ó dr. António Costa, não leve a mal… Mestificação? O senhor fala em mestificação?!

A segunda frase, ligada à primeira, mostrava  que Costa era de facto um mestre a mestificar:

— O engenheiro José Sócrates está em melhores condições para debater consigo. Por que é que não vai lá a casa debater com ele? Tem tantas saudades!

E era verdade, infelizmente, radicalmente verdade. Passos Coelho percebera, ao sair do Museu da Electricidade (que sítio para se sair sem energia, com as pilhas políticas em baixo...), que estava viciado em Sócrates. O seu programa do Governo, aos olhos dos portugueses, era apenas não-ser um programa de José Sócrates. Medidas concretas, nicles, a ideia de campanha era só “fazer de morto”, “deixar correr o marfim” e deixar o PS automutilar-se em mais asneiras de campanha. Mas, ao dizer 12 vezes Sócrates em directo, contra todos os que pensaram que ia mostrar-se acima do assunto, Passos mostrou precisar de um programa de dessocratização. A cura são 12 passos, como os Alcoólicos Anónimos. Austeridade total aplicada ao antigo primeiro-ministro. Tal como beber um copo: um José Sócrates é de mais e mil José Sócrates não chegam.

Entrada imediata nos Socráticos Anónimos (SA), como tantos portugueses que há meses andam por aí aos caídos, uns porque acreditam na culpa, outros porque não acreditam que Sócrates é culpado, e não fazem mais nada nesta vida miseranda. Perdem a casa, perdem o emprego e... espera aí, isso foi culpa da troika... Voltemos à nossa narrativa. Bolas, o Sócrates é que inventou isso da narrativa! (Mãezinha, reparo que também estou viciado, ando a dar-lhe no José, preciso de me curar a frio depois das eleições.)

Voltemos à nossa história. Era a 13º e última vez que Passos Coelho ia tomar a sua dose diária de José Sócrates. Depois acabava-se, a partir dessa noite ia ficar limpo.

— Nunca mais serei socratodependente!

Mas era muito perigoso ir à fonte do mal, o número 33 de Lisboa. Pensar que outros desgraçados injectaram todos os dias o 44 de Évora! Isso dá cabo do fígado. Os repórteres viram chegar uma estranha figura de capacete de mota, com um camaroeiro comprido às costas. Passos disfarçara-se muito bem de qualquer coisa e ninguém o reconheceu.

— Vem entregar uma pizza doube-cheese/pepperoni?, disse um repórter, com azeda ironia teletransmitida.

— Não nos enganas. Outro golpe sujo para nos abalar o prestígio profissional de jornalistas de porta-de-prédio?

Passos encolheu os ombros e afinou a voz uma oitava acima.

— Não, não. Eu limpo piscinas. Vim só aqui para... para fazer um ahhhh... o plafonamento do chão de uma piscina, mas nem sei o andar. Não sei se a piscina é no terceiro, se é no rés-do-chão.

— Qual é a sua empresa?

— Ahhh... A Tecnofor... ai, a Tecnopool. É uma coisa nova.

Passado o obstáculo das câmaras, entrou no patamar e encontrou o polícia. O guarda estava impaciente. Apetecia-lhe atirar gás de mostarda aos visitantes. Ao menos com os espoliados do BES um agente tem alguma actividade, sente-se útil, pensou o agente José Carlos Rebocho Crespim, da esquadra de Sete-Rios, que pediu para não ser identificado.

— Cartão de cidadão, se faz favor.

— Cá está. Esse número que aí está no verso, o da Segurança Social, enfim... já está pago, paguei tudo, foi um lapso, eu desconhecia que as contribuições do regime contributivo, neste caso horizontal e não vertical como o plano dos socialistas, ahhh... isso foi uma grande mestificação do jornal PÚBLICO e...

— Não estou a perceber patavina.

— Só venho limpar uma piscina, deixe-me entrar!

— É esperado em casa do... você sabe quem?

— Mais do que esperado, senhor guarda. Desejado.

A porta abriu-se e apareceu Aquele-cujo-nome-já-se-disse-demasiadas-vezes-é-que-isto-já-enjoa-caramba.

— Vieste atrasado. Pensei que viesses a correr logo a seguir ao desastre. Então precisas da ajuda aqui do preso político?

— Sim. Também fiquei preso político das minhas promessas falsas.

— Ora, isso passa. Vieste de TGV? Viajaste pelo novo aeroporto? Não, pois não?

— Por favor, senhor engenheiro, não se fique por uma declaração de apoio simples e discreta. Diga ao António Costa que gostava de integrar o Governo, sei lá, grite o seu amor incondicional pelo PS!

— Mas isso pode prejudicar o meu partido.

— A ideia é essa. Eu não gosto do António Costa, mas não o detesto como Aquele-que-nós-sabemos-e-que-está-aqui-à-minha-frente.

— Hum, por outro lado, com o PS no Governo, isto de eu ser um preso político fica mais duro de explicar.

— Lá está.

— Ok, alinho. Mas em troca, quero um favor.

— Já se esperava.

— Tens de me explicar o plafonamento da segurança social.

— Bom... hum. Faltam 600 milhões de euros.

— E...? Não faças essa cara de virgem vestal. E?...

— É esse problema.

— Mas o que é isso de 600 milhões?

— É o que falta! Faltam 600 milhões de euros!

— Não percebo. Se faltam 600 milhões falem com um vosso amigo. Assim é difícil conversarmos.

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