O menino na areia

Quando choramos a morte de um menino no mar é isso que choramos, com a genuína impressão de que tudo falhou, porque a morte tão impossível de uma criança põe em causa o mundo.

Sabemos bem que a guerra é sobretudo no lugar de partida, distante, como se fosse indiferente por nos deixar, aqui, a salvo. Mas não é imediatamente sobre a guerra que falamos quando nos referimos a um menino morto no mar da Turquia. Nesse instante, confinamos o assunto ao corpo deitado do menino, amoroso, como se fosse encontrar modo de dormir numa extensa almofada de espuma. Já não é uma pergunta sobre ideologias ou religião que nos fazem, já não é política, é só um menino adormecido para sempre. Pensamos em como poderia estar connosco, brincando num agasalho, sorrindo na sua sagrada inocência.

É incompreensível que se queira disciplinar a comoção generalizada, como se nos quisessem explicar por que devemos sofrer e por que não devemos sofrer. Adianta muito pouco que nos digam que já devíamos ter chorado com o anúncio da guerra que desencadeia a fuga. Adianta pouco que nos acusem de distracção. O quotidiano deita mão das suas rotinas para uma distracção fundamental, sem a qual ninguém se estrutura e ninguém pressente a felicidade. Somos todos resultado de uma protecção básica que nos impede de estar em constante modo de alerta. A maturidade da cidadania, num certo sentido, é manifesta exactamente pela liberdade de estar e não estar alerta. Criamos as instituições e aceitamos cada sistema com a esperança elementar de que vigiem e promovam a decência humana perante a nossa constante incapacidade de o fazer.

De cada vez que alguém lamenta a morte das crianças que procuraram refúgio desenrola-se um triste coro de brutos. Não podemos lamentar as crianças sírias porque temos crianças com fome em Portugal, e não podemos lamentar as que passam fome porque outras estão morrendo de cancro nos hospitais, e não podemos falar dos hospitais porque os reformados pagam quinze euros por uma consulta básica, e se discutimos isso devíamos era resolver a questão dos submarinos e da figura difícil de entender e de explicar de Paulo Portas. Para chegar a Portas temos de lembrar o desajeitado de Cavaco Silva e também o impasse em que meteram Sócrates. Quando vemos um menino morto numa fotografia ou num vídeo que a televisão passa não podemos lidar com tudo. Basta-nos isso mesmo e, isso mesmo, já é um certo fim do mundo.

O medo vai inventar todos os horrores para atribuir aos refugiados. O recato das famílias vai temer que o desespero de quem procura sobreviver destrua os valores, partilhe a fome. Estamos pouco habituados à verdadeira solidariedade. Somos genericamente melhor agressores do que cuidadores. Quando falhamos no cuidado, estamos a falhar contra nós mesmos também.

Entendo bem que nos frustre tanto quanto passam os nossos, metidos numa crise imoral, debaixo de governos culpados que atribuem as culpas ao cidadão inocente, mas não posso achar saudável que se vejam as fotografias das crianças mortas como se fossem postais turísticos de uma realidade normalizada para longe de nós. Não há normalidade nem na morte das crianças nem na dessensibilização perante a morte das crianças. Ao menos isso, deixemos que se sinta profundamente, e pensemos honestamente, humanamente, que é preciso solucionar.

Não vamos jamais resolver todos os problemas. Estaremos sempre aflitos com o grotesco de que os homens são capazes. A única coisa que claramente podemos fazer é optar, no mais profundo de nós, por um lado da barricada. Estaremos do lado dos eternamente desconfiados, aqueles que ab initio já atacam porque não toleram diferenças e recusam qualquer risco, ou do lado dos que guardam a esperança, aqueles que ponderam os riscos mas preferem acreditar que a generosidade é uma terapêutica universal que pode, de facto, irmanar povos, pode irmanar pessoas.

À consciência de cada um, fica o sentido das lágrimas vertidas pelo menino na areia, por todos os meninos e toda a gente que, no resto da conta, apenas procuravam o contrário, viver. Se alguém puder acusar outrem da obscenidade de querer viver, algo estará, por definição, doentiamente errado.

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