Regresso aos cais de Esmirna: um século depois, para onde vai a Europa?

Temos a possibilidade de olhar esta crise como uma forma de construir uma política verdadeiramente internacionalista.

“Elas gritavam.” Era o pior. As mães e os seus gritos no cais. O relato do conto No Cais de Esmirna é de Ernest Hemingway, regressado às armas – agora à guerra greco-turca de 1919-23. Esmirna, de onde foram expulsos 1,5 milhões de gregos da Ásia Menor depois da I Guerra Mundial. Atenas moderna, hoje símbolo do declínio do projeto da UE, foi construída por estes refugiados.

Esmirna fica a 230 km de Bodrum, a praia de onde partiram com a mãe e o pai, num barco de borracha, Aylan e Galib, para chegar à ilha de Kos, a quatro quilómetros de distância. Terão navegado 500 metros – a 20 minutos de braçadas de terra, morreram. Aylan morreu vestido com doçura, na posição semifetal, em que vimos os nossos filhos adormecer tranquilizados. E nós chorámos todos, ainda mais pessoas do que os milhões que saíram às ruas no dia 23 de Março de 2003 contra a guerra do Iraque – a maior manifestação da história contra a guerra.

A família vinha, como todos os refugiados, fugidos à morte e à pilhagem – os terroristas, como disse António Guterres, à frente do ACNUR, “chegam de avião, não num barco de borracha”. A Síria, uma sociedade complexa e evoluída, com força de trabalho qualificada, não existe já como Estado. São escombros, nada mais.

Um sector de esquerda que vê o mundo a preto e branco – já no tempo da Guerra Fria se limitava a ver o mundo pró-Moscovo ou pró-EUA, esquecendo-se de que há muitos projetos alternativos progressistaa a ditaduras distintas –, tem defendido o apoio a Assad. É incompreensível. Na região, depois de aniquilada, sem ajuda ocidental, a pequena resistência síria árabe revolucionária, sobraram dois "senhores da guerra", apoiados em tribos distintas de mercenários – Bashar Al-Assad e, do outro lado, o Estado Islâmico. São ditadores, distintos, mas ditadores – é irrelevante, para quem defende a igualdade e a liberdade, quem os apoia. O único vestígio de forças progressistas que podemos hoje apoiar são os curdos do PKK, uma organização marxista revolucionária, de uma invulgar igualdade e justiça nas suas fileiras, que derrotou o EI em Kobani, e que acabou de ter uma expressão eleitoral maciça na Turquia, o HDP, aliança de curdos e liberais de esquerda, com 12% de votos e 80 lugares no Parlamento. A Turquia, aliada da NATO, com o silêncio ocidental, tem aproveitado para... bombardear os curdos do PKK.

As milícias em guerra sacam e pilham o trabalho e bens de consumo e sobrevivência das pessoas – a fuga em massa destes pode significar o esvair destas forças em guerra porque deixam de ter quem exerça trabalho e mantenha a produção. A fuga é a saída possível e correta. E a recepção aqui é o mínimo que o continente do nazi-fascismo, dos campos de trabalho forçado e depois de extermínio, tem a fazer.

Aylan “era um homem” – homenageio aqui Primo Levi – e a sua fotografia entrará para a história como a de Kim Phuc, a menina nua que gritava fugindo dos horrores da guerra do Vietname, há quatro décadas. Hoje uma senhora que vive no Canadá, o mesmo país onde Aylan se tornaria homem se o asilo à família não tivesse sido concedido depois de mortos. A democracia liberal é um cadáver.

Maçães, secretário de Estado dos Assuntos Europeus, disse que a partilha da foto era um acto “narcisista”. É natural, Maçães faz parte da família política de dirigentes europeus que há duas décadas defende que as guerras são “humanitárias”. A inversão de valores entre quem governa a Europa é o padrão. Mas ser comum não significa ser normal. O apoio à monocultura, a gestão de excedentes alimentares da PAC que despejam a preços baixíssimos comida em África arrasando a agricultura local, a paralisia perante a política externa de guerra norte-americana (a cimeira dos Açores anunciou, em 2003, o troar das bombas), a complacência com os ditadores africanos (quantas vezes foi Kadhafi recebido com todas as honras por chefes de Estado na Europa?), a recusa em ajudar as tropas de resistência porque têm um carácter revolucionário; o apoio inominável à Arábia Saudita, onde estes teocratas fascistas são gerados, a simplicidade com que os superavits primários das ditadura chinesa, angolana ou da Guiné Equatorial, conseguidas com exploração de trabalho miserável e forçado, entram nos nossos países como “investimento”, isto é, venda de bens públicos para remunerar a banca privada falida.

Desde 2008 cresceu exponencialmente o número de refugiados e deslocados – são hoje 52 milhões, a maioria de zonas ricas em matérias-primas. À Europa chega apenas a ponta do icebergue, que são os que têm capacidade de pagar a passadores ilegais.

Em Maio de 2015 estive numa conferência na Universidade Católica de Lovaina. Ao meu lado Xavier Declercq, um dos responsáveis da Oxfam da Bélgica, uma das maiores ONG mundiais, apresentou o relatório da Oxfam, À Égalité, 153 páginas. Cito de memória uma das histórias que gelaram a assistência: o FMI exigiu a destruição de stocks alimentares no Mali que eram usados quando havia quedas da produção agrícola para evitar a fome – sem stocks sobem os preços dos alimentos e os lucros, sobe também o número de africanos a atravessar o Mediterrâneo para fugir à inanição. Aprendemos algo no Mali há 30 anos? Não, porque na forma não é muito diferente quando se destroem países inteiros para remunerar acionistas daquela que é hoje a maior indústria do mundo – o complexo militar industrial norte-americano, responsável por metade da produção da GE ou da Boeing, por exemplo, ou de quando o FMI vem hoje a Portugal exigir cortes nos profissionais de saúde – ficar sem médicos é destruir riqueza para subir lucros, neste caso lucros na remuneração da dívida pública pela destruição do Estado social. Seja na venda de alimentos, seja na remuneração da dívida pública, seja na produção de armas, o modo de acumulação actual está em declínio profundo, declínio que começa a assemelhar-se ao longo declínio do modo de produção feudal, marcado pela anarquia e pelas guerras.

Não tem fundamento o temor das consequências da ajuda aos refugiados. Um refugiado não fala a língua do país de acolhimento, não é, portanto, força de trabalho que irá competir rebaixando os salários dos que estão a trabalhar; é alguém que está limitado a bens de consumo essenciais num período transitório. Portanto, impulsiona o consumo – e a colecta de impostos sobre esses bens – e ainda toda a estrutura económica de acolhimento.

Mas a economia pura não existe, existe a economia política. Temos uma dívida moral para com estes povos. E os dirigentes dos países da NATO, americanos e europeus, que ordenaram a guerra no Iraque, orquestraram a intervenção na Líbia que desbaratou a “primavera árabe”, esses mesmos que nos impõem a sua ‘austeridade’, têm de assumir responsabilidades pela calamidade que ajudaram a provocar.

Temos a possibilidade de olhar esta crise como uma forma de construir uma política verdadeiramente internacionalista que coloque no seu eixo a produção de bens e riqueza para as necessidades mundiais, o direito dos povos a disporem de si próprios e dos seus recursos, o fim da pressão migratória baseada nos que fogem da fome e nos que anseiam por trabalho (barato, “competitivo”). Numa palavra, o direito a partir e também o direito a ficar e ser felizes onde estamos.

Historiadora, Universidade Nova de Lisboa e IISH (Amesterdão)

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