10:04, uma fotografia íntima do presente

"O romance era uma conversa em que não queria participar", diz Ben Lerner. Encontro em Nova Iorque, debaixo de neve, com um dos nomes mais criativos das letras norte-americanas, no momento em que chega a Portugal — e em que o futuro, como naquele filme com Michael J. Fox, se torna passado.

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Autor de três colectâneas de poesia e de dois romances, Ben Lerner faz confluir o detalhe da experiência pessoal com o exercício crítico DR

A cidade “é como uma experiência corporal”, diz o escritor. Passou a porta, deixou pegadas na neve mole. O modo como experimenta o exterior é o de um caminhante. Ir de um lado ao outro com tempo para reparar na contradição, ou para sentir o que é ter frio nos ossos. Escrever, para Ben Lerner, é conseguir passar isso ao texto em toda a sua imensa complexidade. Mas passar vida, e não uma abstracção.

Estamos no interior de uma cafetaria em Prospect Heights, um bairro mais ou menos no centro de Brooklyn. Em todas as mesas há um portátil ligado, um livro aberto; das colunas sai a voz de David Bowie a cantar Space oddity. Ben Lerner tira o casaco e as luvas, desaperta o cachecol. Vive perto com a mulher e os dois filhos pequenos, dá aulas de inglês no Brooklyn College e escreve. Poesia, ficção, ensaio, crítica de arte e de literatura. É um dos nomes mais referidos quando se fala de multi-talento na América contemporânea, com uma originalidade que torna os seus escritos — sobretudo de prosa — difíceis de arrumar num género. Autor de três colectâneas de poesia e de dois romances — Leaving the Atocha Station (2011) e 10:04 (original de 2014, agora editado em Portugal pela Teorema)  —, faz confluir o detalhe da experiência pessoal com o exercício crítico, esmiuçando emoções, convocado referências, trazendo a figura do autor para o centro de uma acção insolúvel porque se adivinham nela sempre outras possibilidades. “Quero levar o leitor comigo para a intensidade das emoções vividas”, afirma.

Tudo começou por ali, junto ao sítio onde está a Brooklyn Bridge. “Pensei em [Walt] Whitman a olhar para o outro lado do East River a uma hora avançada da noite, antes da construção da ponte, antes de a cidade ser electrificada, acreditando que estava a olhar para outro tempo, esvaziando-se para poder ser preenchido por leitores do futuro (...). Foi ali que decidi substituir o livro que tinha proposto pelo livro que estão a ler agora, uma obra que, como um poema, não é nem ficção nem não-ficção, mas sim um bruxulear entre elas...”

A voz aqui é a de um escritor como Lerner que pode ser Lerner mas na verdade é uma personagem, protagonista da acção contida no livro que o escritor tem à sua frente na edição americana. 10:04 é um território onde vários tempos se manifestam: o real, o ficcional; o das memórias individuais e colectivas; o da memória enquanto manifestação cinemática; o do corpo e o da mente; o das catástrofes; o interior e o dos outros. O tempo de todas as possibilidades, enfim, como numa colagem que toma por referência The Clock (2010), filme/instalação de Christian Marclay. Naquele dia ficcional, junto ao East River, pensando em Whitman, Lerner situou-se no presente a partir do qual revê passado e futuro. “Adoro dramatizar encontros e o relógio é menos sobre mim ensaiando como escrevi este livro e mais sobre os encontros dentro do livro com o relógio, em que o romance é uma espécie de espaço para ligar tudo. É um trabalho que faz pensar nas diferenças entre o tempo do relógio e um tempo cheio de significado e de possibilidades”, refere o autor, que usa o espaço em que esse tempo se manifesta como o grande território onde a vida pulsa. É a partir dessa ideia que ensaia uma das características que mais valoriza na literatura: a capacidade de criar verosimilhança. “Há um certo tipo de detalhes que permitem que nos situemos. Talvez a tentativa seja a de procurar elementos que tragam tanta especificidade quanto possível.” 

A cidade vai dando pistas, as tais possibilidades que Lerner persegue, sempre fugindo à abstracção. “Acho que gosto de olhar para mim como um materialista nesse aspecto, o dos detalhes. Materialista sem a conotação política atribuída por uma certa esquerda que defende que a literatura se deve basear em abstracções, o que quase sempre dá coisas horríveis. Para mim ser um materialista significa preocupar-me com o momento histórico; não fazer generalizações sobre ele, mas apresentá-lo de uma forma densa, como um corpo de detalhes. É o mais perto que se consegue de uma expressão autêntica da condição histórica”, refere Ben Lerner, convocando uma inspiração: John Berger (1926). “Não é muito lido. Tem escrito muito sobre marxismo, é um crítico do tema, e para ele o marxismo em literatura não é escrever abstracções frias, mas ligar ao corpo. Como é sentir que estamos no espaço, como é que uma canção popular circula, como é que ela nos chega e nos emociona. A grande especificidade e adensidade dos detalhes, e o ritmo, a prosódia. O livro é autêntico se isso significa estar vivo, mas é também autêntico no sentido em que é o terreno do pensamento ou do amor.”

Regresso ao futuro
Temos o relógio na cidade. Não na cidade do Midwest — Topeka, no Kansas — onde Benjamin Lerner cresceu e onde em vez de caminhar se anda compulsivamente de carro, mas, sobretudo, nesse grande organismo onde o tempo é percepcionado de modo mais vertiginoso, sugerindo outras vidas, aquele que Marclay representa no seu The Clock. Em 10:04, a obra de Marclay é apresentada como “a derradeira fusão de tempo ficcional e tempo real, uma obra concebida para obliterar a distância entre a arte e a vida, a fantasia e a realidade”; “uma montagem de vinte e quatro horas de milhares de cenas de cinema, e algumas de televisão, editadas de modo a serem exibidas em tempo real; cada cena indica as horas com uma imagem de um relógio ou uma menção no diálogo; o tempo dentro e fora do filme está sincronizado”. 

The Clock deu a Ben Lerner a solução para o romance, a hipótese de fazer perguntas como: quantas ficções se podem fazer em 24 horas? E numa vida? E se todas as vidas se sobrepusessem? Tudo numa permanente relação entre o que se projecta no futuro e o modo como o presente vai rearrumando essa visão futura até ela se tornar passado. No Lincoln Centre, Alex e Ben vão ver o vídeo. “Eu quisera chegar antes das 10:04 para ver o relâmpago atingir a torre do relógio do tribunal no Regresso ao Futuro, permitindo que Marty regressasse em 1985, mas Alex não conseguiu apanhar um comboio de regresso da casa da mãe a tempo." 10:04 é uma hora perdida, uma possibilidade perdida? “Interessa-me muito a velha imaginação sobre o futuro. Quando escrevo 10:04 é um pouco a pensar em como se escreveu 1984 [de George Orwell], uma visão distópica sobre o futuro. 2001 [Odisseia no Espaço] é outra visão do futuro. São datas que mudam a ficção. Pensei em como é que o futuro me aparecia, ou no que me sugeria quando eu era miúdo, como eram as ficções e como elas mudaram. O livro está repleto destes estados imaginários sobre o futuro e da velocidade com que as coisas mudam. Muitas vezes isso é assustador, mas é também a oportunidade de escrever uma nova história — a tal centelha de possibilidades — quando as histórias em que vivemos já não parecem funcionar. É necessário repensar as nossas narrativas, refazer as nossas ficções sobre o futuro à medida que vamos ficando mais velhos e elas já não são apelativas. Claro que 10:04 é sobre voltar ao futuro, mas também sobre o relógio, o modo como funciona, uma narrativa contemporânea, um olhar sobre o presente.”

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Ficções para viver
Mãos cuzadas sobre o tampo da mesa, olhar vivo emoldurado por sobrancelhas que parecem sempre em alerta, o escritor conta como vê o seu romance. “É um livro sobre a relação entre tempo real e tempo ficcional; fazendo de cada minuto uma ficção ou ainda subdividindo esse minuto. Um minuto pode dividir-se de modos estranhos. É sobre o tempo, mas é sobre este lampejo de ficções de diferentes narrativas, das diversas possibilidades, uma espécie de colagem dos diferentes momentos.” 

O protagonista tem o nome do autor, Ben, num reflexo pessoal assumido, mas incompleto, “sem grande confluência”. Como Ben Lerner, Ben é escritor, vive em Brooklyn, anda pela cidade; um e outro têm muitos pensamentos comuns, experiências parecidas com a literatura, a arte, o mundo, mas é tão longe quanto vai essa exposição do “eu”. O Ben protagonista de 10:04 recebeu dinheiro adiantado por um livro que há-de escrever no momento em que lhe é diagnosticada uma doença que muda a sua perspectiva acerca da sua própria mortalidade. É o melhor amigo de Alex, três anos mais velha, desempregada, que rompeu a sua relação amorosa e pede a Ben que doe o seu esperma para que ela possa ser mãe. Enquanto isso, Ben pensa no livro que vai escrever, vai tentando dar-lhe forma. 10:04 é também uma história sobre o processo de contar uma história.

“É uma preocupação antiga, a de o romancista elaborar sobre o acto de escrita”, contextualiza Ben Lerner. Lawrence Sterne passou-a de forma magistral para um livro que Lerner cita aqui, o clássico Tristram Shandy (Antígona). Mais recentemente, o norueguês Karl Ove Knausgård tornou essa experiência ainda mais pessoal, não distinguindo autor e personagem principal numa série de seis romances a que chamou A Minha Luta (Relógio D’Água). É a luta de quem escreve e de quem vive, numa unidade complexa sobre a qual Lerner escreveu na London Review of Books. Em Knausgård, como em Lerner, há um “eu” pessoal na escrita de ficção, mas o caminho que cada um escolhe “tem semelhanças que enfatiza as diferenças”, diz Lerner. “N'A Minha Luta há uma profunda auto-exposição e uma espécie de colapso entre ficção e excesso de realidade. No meu livro não procuro o colapso entre ficção e realidade, mas tento pensar de que forma é que as histórias que contamos organizam as nossas vidas.”

10:04 é sobre alguém cujas funções estão a colapsar, alguém que descobre uma nova fragilidade biológica que de alguma forma o estimula. “As ficções em que ele organiza a sua vida estão a estreitar-se e ele imagina novas histórias e novas formas de comunicar. Não está apenas a escrever este livro. Está a tentar imaginar como vai estruturar as ficções com as quais vai viver.” Lerner quer dizer que 10:04 não é apenas sobre como a literatura se torna literatura, mas como cada um de nós — e não apenas o romancista que está sempre a organizar a vida no tempo numa história significativa e no sentido em que as histórias são um assunto alterável — dá forma às suas narrativas pessoais. Num caso como noutro, refere, “pode haver sempre muitas versões possíveis”.

A acção de 10:04 passa-se entre duas tempestades — os furacões Irene, de Agosto de 2011, e Sandy, de Outubro de 2012. Na forma como se prepara para a catástrofe, a cidade é comparável ao polvo, na sua inteligência e na sua capacidade de adaptação. “É muito fácil escrever um romance sobre os horrores da contemporaneidade. Interessa-me escrever um onde estejam as contradições das experiências”, declara o autor. Talvez por isso se possa afirmar que no livro de Ben Lerner há uma política da intimidade. “Qual é a função política do romance? Em parte é trilhar o caminho do processo histórico, seja no mundo financeiro ou artístico. Gosto de pensar que é uma fotografia íntima do modo como esse grande processo é, ou se vive, numa escala individual", refere Lerner, que nunca pensou em si como romancista e se vê como um poeta, distinguindo o processo cerebral de escrever poesia e ficção. “Resisti muito ao romance. No primeiro, andava sempre a dizer que não estava a escrever um romance. Acho que o escrevi, apesar de mim.” Ri desse confronto. “Muitos poetas têm-se manifestado contra o que consideram o poder dominante da ficção. Não é que eu não gostasse de romances, mas era como se fosse uma conversa em que não gostava de participar. Depois há uma coisa quase psicológica, não sei se é uma neurose: ando sempre a fingir não estar a fazer o que estou a fazer.” O facto é que se diz “alérgico” a um tipo de romance que quer impor uma ordem psicológica do momento, ou que quer reduzir a complexidade histórica ao drama e uma família. “Adoro Jane Austen, mesmo que ela case toda a gente no fim, mas é como se fosse uma coisa de momento e não aquilo que muita da ficção contemporânea pretende fazer ao dizer-se realista, e que me parece, sobretudo, consistir numa redução da complexidade. Quero mais indeterminação, mais abertura, maior interesse pelas linguagens.”

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O livro de Lerner é difícil de arrumar num género estanque. Pela possibilidade de linguagens e pelo papel do autor nisso tudo. É fácil ver a influência do romance europeu — de W. G. Sebald, nesse diálogo de géneros, no exemplo de como o romance pode ser mais um padrão e menos um produto, a confluência de vários materiais em que o autor se dilui. Menos óbvio é adivinhar ali Fernando Pessoa. “O trabalho de Pessoa com os heterónimos é muito mais interessante do que muitas das coisas que se fazem agora. Ele chamou a ficção para o próprio autor, ficcionou o autor, e foi uma grande influência para mim. Foi tão radical, com todos aqueles nomes diferentes. Fui mais influenciado por ele do que por muitos escritores de ficção.” Defende que o romance “tem de estar em contacto com o radicalismo formal, tem ter ambição formal”. É capaz de gostar dos romances de Elena Ferrante no seu classicismo, mas afirma que tenta escrever para onde a linguagem o puxa. "A forma pressupõe uma tecnologia de descoberta em que não se sabe o que pode acontecer." 

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