Sobreviver na era da reprodutibilidade do horror

Um romance que viaja de Portugal continental ao Brasil, passando pelos Açores, e que ecoa e problematiza a diáspora judaica

Foto
Maria da Conceição Caleiro dedica à geografia dos Açores o melhor da sua arte, o mais consumado do seu labor Rui Gaudêncio
Até para o Ano em Jerusalém

 é um livro que se constrói a três tempos, os quais correspondem a outros tantos espaços. Todos eles são percorridos — perfurados, feridos — por um outro espaço-tempo, que lhes é uma espécie de eixo, mas também uma orla, definindo um limite e uma irresolução. Numa primeira fase, não propriamente destacada das que se seguem (essa tenuidade de fronteiras será uma constante dos três momentos do romance, a despeito das rubricas, que são quase didascálias, marcando o ritmo e as incidências da narrativa), Portugal fornece o cenário. A partir de um grupo de amigos e conhecidos, com ramificações que se desviam sem nunca muito se afastarem desse microcosmo dentro da realidade nacional — em Lisboa, ou em torno da cidade —, irradiam as linhas essenciais da intriga, mas também os desvios que elas promovem, que, no fim, darão corpo e solidez ao (aqui proposto) tríptico da narrativa. A ideia de um antepassado judeu, de nacionalidade polaca, instala-se como acendalha e motivador que, no entanto, precisará de um outro cenário, de um outro continente, aliás, para se assumir e para que se produzam as condições, a atmosfera, para o lume que vai ser central em 

Até para o Ano em Jerusalém

.

Apesar (ou por causa?) do seu relacionamento com Maria Luís, Vicente abandona Portugal rumo ao Brasil, para leccionar História numa universidade. Nesse país se centra o que aqui se designa por segundo ponto do romance — mas que, repita-se, é apenas um dos passos de um contínuo não excessivamente marcado por separações cabais. O fio deixado pendente na primeira entrada é retomado no continente sul-americano, de onde transitará para os Açores, espaço a que a autora regressa, após O Cão das Ilhas(Sextante, 2009) e Too Much (Alambique, 2014). Aí se centrará a resolução do enigma da ancestralidade perdida num passado por desvendar; mas é também lá que se dá o conflito entre as personagens e a ruptura final das duas figuras principais da intriga. O esquematismo da apresentação é inversamente proporcional à consecução da narrativa. As transições, aparentemente abruptas e casuísticas, são decorrências sagazmente tornadas necessárias pela urdidura do enredo e pelas premências que ele motiva. Por esse motivo, a digressão intercontinental, a dispersão da geografia, dos modos e dos sentidos que se criam, acaba por não obstar a uma construção romanesca suficientemente estável para lidar com essas operações de transferência e reformulação no espaço e no tempo — parafraseando a autora, sempre entrelaçando situações.

A deriva espacial, que conduz a evolução desde a Europa até à América, e desta para um ponto estrategicamente intermédio entre os dois continentes, as ilhas açorianas, conhece uma espécie de estrutura prévia na errância do povo judeu. Nesse sentido, uma dispersão de carácter vincadamente pessoal e efémero, como a das personagens do romance, é prefigurada pela diáspora judaica. As particularidades subjectivas e circunscritas de Maria Luís, Vicente, David são dispostas de encontro à grelha prévia do destino trágico do povo judeu. Uma palavra — “grelha” — que não pode deixar de fazer pensar em Paul Celan, que, em Grelha da Linguagem, falava do “círculo dos olhos entre as barras” e de “bocas cheias de silêncio”. Estrutura para as palavras e sombra do cárcere, portanto. Descendentes dessa linhagem marcada pela tragédia, Maria Luís ou David não são meros joguetes, nem simples figurantes numa peça que os usasse a seu bel-prazer. São assinalados, obscurecidos, mas também iluminados, por esse passado, que disponibiliza como que uma infra-estrutura sobre a qual edificar a ficção. A dúvida, a curiosidade e o desconhecimento marcam logo as personagens no primeiro momento. As conversas cruzadas entre amigos convocam, por diversas vezes, a cultura judaica, seja pela via mais especificamente dos textos sagrados, seja por meio das artes pictóricas que lhe são congéneres (o quadro Judite e Holofernes, de Caravaggio, por exemplo, é uma presença marcante). Essa inquietação será reformulada já no Brasil. Será mesmo teatralizada, num espectáculo de carácter doméstico, que, na sua natureza aparente improvisada, fortalece a importância desse quadro de referências. Desse estádio entre o religioso e o alegórico passa-se, todavia, para o histórico. Assim se assume a secularização da diáspora, localizando esse movimento no panorama aterrador da perseguição nazi e na anatematização da “lepra” (p. 124) judaica. Esse momento da história vai chamar até si os fluxos da narrativa até então congeminados, pois os antepassados que são alvo da busca que preenche o romance rumaram, no passado, às ilhas dos Açores, onde decorre o último acto de Até para o Ano em Jerusalém.

O contraste entre Portugal e o Brasil é feito de forma subtil, opondo, na transição de um para outro parágrafo, duas grafias, dois modos de entender a mesma realidade: “geleia” versus “geléia” (p. 139); ou a presença quase ritualística do chá, do lado português, em contraponto com a cerveja, marcante no espaço brasileiro. Mas nem sequer se evita o acesso mais anedótico, como, por exemplo, pondo nos pratos da balança o Aeroporto António Carlos Jobim e o da Portela e frisando que este nunca “se converteria em António Variações, ou mesmo Marceneiro” (p. 77). Aliás, o que fica atrás dito, acerca da harmonização dos diferentes segmentos, não invalida que os espaços sejam encaixados no tecido da narrativa de forma hábil, mas assinalando os diferentes relevos das peças, por assim dizer. Basta atentar num trecho açoriano como este — “Tu ainda insististe que nunca tinhas visto tanto verde junto emaranhado. Que em Portugal não havia fetos assim, gigantes. É claro que não caiu bem dizer Portugal.” (p. 180) — para se perceber que a homogeneização ocorre ao nível composicional do romance, e não no plano das suas especificidades locais. Não custa, de resto, perceber que se situa nas sequências açorianas o ponto mais forte deste romance. É notória a dissonância em relação à zona da narrativa localizada em Portugal continental. Tudo endurece, se torna mais denso no romance, na transição de Lisboa para os Açores. A displicência no diálogo, que flui ao sabor caprichoso do acaso e da vontade disseminada de cada falante, numa orgânica infirme, intermitente, de falas sincopadas, dá lugar à estatura quase pétrea da matéria insular. O diálogo faz-se mais austero e grave — quer em termos da sua estrutura, quer em termos da sua semântica. A autora parece mesmo dedicar o melhor da sua arte àquela geografia das ilhas atlânticas, que recebe o mais consumado do seu labor — “Uma visão daninha, uniforme. As facções na ilha dividiam-se. Mas aquele seguia a besta. Trepava pela noite até cima, com as mãos. Mais à frente livrava-se como podia da vegetação maciça e seguia até captar algum som ou onda” (p. 174).

Romance de três espaços atravessados pelo espectro de um espaço que diríamos mítico — no sentido em que transcende os limites históricos, mesmo se os conhece —, Até para o Ano em Jerusalém concebe no horizonte da história judaica o padrão organizativo que lhe permite operar uma reflexão sobre o destino que é os destinos todos. A força com que se inserem estes versos — “ Todas as estradas levavam à morte/ todas as estradas” (p.182) — faz pensar neles, e em todo o romance, como uma imagem, segmentada pelos passos da ficção, do próprio destino da humanidade na sua “condição trágica” (Unamuno) representada na caminhada do povo judeu.

Sugerir correcção
Comentar