Da Venezuela, com ferocidade: uma história de amor e luta de classes

É uma surpresa no concurso do festival a primeira obra de Lorenzo Vigas. É uma história de amor, é uma história de guerra social. Os dois actores, interpretando um homossexual de meia-idade e um rapaz das ruas de Caracas, metem medo.

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O realizador entre os dois actores Reuters

“Obsessão” é a palavra-chave, assume o venezuelano Lorenzo Vigas. Uma curta-metragem de 2004, Los Elefantes nunca Olvidam, não lhe fez sair da cabeça o tema “da paternidade”.

Nada que ver com a relação pessoal de Lorenzo com o seu pai, tudo que ver com um motivo arquetípico, segundo ele, da sociedade venezuelana e da América Latina em geral: a “ausência do pai”. A ideia de trilogia foi a forma de lidar com a obsessão, e o segundo título, que é a sua estreia na longa-metragem, está aí, é uma surpresa da competição de Veneza: Desde Allá.

Há outras palavras-chaves: solidão; medo...

A solidão deles mete medo, a de Armando e Elder. O primeiro é um tipo de meia-idade – tudo isto se passa em Caracas – que atrai adolescentes da rua a casa. Acena-lhes com o dinheiro, mas não lhes toca, nem permite que lhe toquem. Observa a nudez deles à distância – desde Tony Manero, o filme do chileno Pablo Larrain, que experimentámos medo perante a capacidade do actor Alfredo Castro recuar até um grau zero da emoção, como se já não houvesse batimento humano.

O segundo é o adolescente que Armando leva para casa. Elder agride-o na primeira vez e rouba-lhe o dinheiro, chama-lhe “maricón”. Armando insiste, regressa aos bairros pobres de Caracas, traz Elder para casa, mas a dependência de Elder é sôfrega, violenta – Luis Silva, o intérprete, conhece as ruas de Caracas como se fossem suas, e a ele o realizador não deu guião para trabalhar, ao contrário do que fez com Alfredo Castro, a ele as cenas eram explicadas apenas meia hora antes de filmar e Luis tinha de ir buscar à sua vida as soluções (o resultado dessa opção é um triunfo).

Desde Allá filma este embate – que começa por ser o confronto entre dois actores de mundos diferentes, mas que são abundantes reservatórios –, uma relação que vai atravessando fronteiras, é sexo, é dependência económica, é protecção paternal, com o filme a ser capaz de lidar com esse movimento sem o aprisionar. Como no cinema de Fassbinder (este é um filme fassbinderiano, aliás), a extrema dependência afectiva de Elder vai ser usada por Armando, que o utilizará como instrumento de uma vingança pessoal (contra o próprio pai). O que é que é bonito em Desde Allá? A forma como a intimidade das relações – a sofreguidão de Elder, a distância de Armando – está irreversivelmente impregnada pela luta de classes e como Lorenzo Vigas se revela preciso observador dessa ferocidade social e de uma, não menos desesperada, história de amor.

Thriller geriátrico

Começa por ser aliciante a forma como o canadiano Atom Egoyan descreve Remember (concurso): um “thriller geriátrico”. É um filme sobre uma caça ao nazi: Christopher Plummer, 85 anos, sobrevivente de Auschwitz, memória quase a abandoná-lo, a realidade presa por fios, segue as instruções escritas por um amigo, mentalmente ainda ágil, mas fisicamente preso à cadeira de rodas no lar onde ambos se conheceram (Martin Landau, 86 anos), que o podem levar à identificação de um carrasco do campo de concentração. Esse homem exterminou as famílias de um e de outro e esconde-se sob falsa identidade nos Estados Unidos.

Como se começa logo a perceber desde cedo, esse homem que a personagem de Plummer procura para matar é ele próprio. A personagem de Landau engendrou o plano para que fosse o próprio carrasco a ter de se lembrar de si e a agir de acordo com o que encontrou na sua memória – para que fosse Plummer a fazer o que Landau não pode, a passagem ao acto (como, de forma mais ambígua, a personagem de Alfredo Castro no filme do venezuelano Lorenzo Vigas).

O problema é o estado de envelhecimento do cinema de Egoyan. Movimenta-se já com auxiliares de memória, com toda a espécie de bengalas e a dependência de zonas de conforto para evitar perturbação, e assiste-se desgraçadamente a uma regressão, a um balbuciar  – “thriller geriátrico” tem graça, mas o canadiano não se preveniu, há vários telefilmes atrás, contra a decrepitude.

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